Reportagem


OUT.FEST 2024

A esperança, a corrosão social e a morte dos sonhos são constantes da vida.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário; SIRB "Os Penicheiros"

03/10/2024


© Ricardo Almeida

Palavras-chave: comunhão; comunidade; desconstrução; festão; linguagem; narrativa; vanguarda.

 

Depois das vagas de gente dos festivais de Verão, chega o Outono e, consigo, a época dos festivais ditos de nicho. O OUT.FEST, o festival internacional de música dita exploratória do Barreiro, enquadra-se nessa categoria e chegou este ano aos vinte anos. E o seu nicho é mesmo o de levar a música a sério, em particular a mais arrojada, aquela que não se contenta com mais nada que não seja estar na vanguarda ou, pelo menos, de descontruir o que foi feito. Num mundo onde só existe quem aparece/berra/partilha inanidades, os bons também merecem visibilidade. E é para isso que festivais como este existem.

E, por isto (mas não só), ponhamos já as cartas todas na mesa: o OUT.FEST é dos melhores festivais de música do País. De cariz mais generalista (por assim dizer) do que o Amplifest ou o Semibreve (estes mais especializados), alarga horizontes como poucos festivais o fazem (à semelhança do seu congénere Le Guess Who?, ainda que noutra dimensão) e dele se pode dizer que é uma luz de autenticidade no meio de muito plástico e de muita pretensão.

A autenticidade não é algo que se possa comprar; é, ao invés, algo que vem de bom fundo e que merece reflexão e luta pela sua preservação. Neste caso, autenticidade é haver quem programe e frequente um festival por amor à camisola e a novas maneiras de olhar a música, em simbiose com uma cidade que já muito viu e que muitos achavam irremediavelmente perdida para o declínio pós-industrial e que tem no OUT.FEST uma espécie de auxílio para ser uma fénix.

Mas avancemos para o que interessa, para o cerne de quem programa e (salvo uns quantos que vão para ali armar ao pingarelho) e de quem vai ao festival: a música.

Por imperativos curriculares e extra-curriculares não nos foi possível marcar presença no primeiro dia do festival nem nalguns concertos mais adiantados no horário nos outros dias. Todavia, neste nosso primeiro dia no certame ainda deu para testemunhar parte do concerto de Zoh Amba, instrumentista norte-americana e o mais próximo que há de um prodígio destas andanças – pela idade, pelas colaborações (Chris Corsano e Bill Orcutt, entre outros) e, sobretudo, pela obra que vem criando.

No cenário da igreja de Nossa Senhora do Rosário vimo-la a tratar não apenas o saxofone (tenor, sobretudo), mas também a guitarra como um Fahey deste século, com serenidade e com pendor espiritual. Depois da talha dourada, da azulejaria e dos ex-votos vindos da devoção popular, a espiritualidade de Zoh Amba é, ela própria, demonstrativa da esperança e fé humanas – ou não estivesse o templo iluminado pela cor azul, a cor do divino. E cada nota do seu saxofone, por muito abrasiva que fosse, representou mais uma manifestação de fé, a juntar-se às demais e ainda que imaterial.

A acústica admirável amplia o esforço de Zoh Amba, em particular nas notas mais agudas. Se na guitarra evocou tacitamente Fahey e Jansch, no saxofone andou por terrenos agrestes de Colin Stetson e pela meditação de Alabaster DePlume.

Numa igreja que abraça o rio, o “ámen” daquele fim de tarde teve direito a discurso (do que conseguimos ouvir, que a acústica era boa para música mas má para proclamações) da artista sobre a partilha de esperança e fé. Nestes tempos de incerteza, de polarização e de tanto proselitismo dispensável por parte de artistas, Zoh Amba deu-nos, com toda a solenidade, uma centelha espiritual – sónica e verbal.

Depois de uma pausa operacional para uma bem malhada cachupa o festival prosseguiria numa das nossas salas preferidas, a da Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense “Os Penicheiros”, uma das colectividades (esta já com século e meio de existência) que distingue o Barreiro e que fornece ao festival salas para a construção de uma história e legado ímpares. Imponente e cavernosa, nela assentam que nem uma luva os projectos da noite, Dreamcrusher e Armand Hammer – como em tempos assentaram as grandes actuações de James Ferraro ou dälek. E a fé e a esperança que trazíamos? Essas ficariam à porta, como se verá.

 

Dreamcrusher – SIRB “Os Penicheiros”

“Abandonemos toda a esperança mal entremos na sala d’Os Penicheiros”, diria um Dante imaginário ali ao canto, que Dreamcrusher, projecto de Luwayne Glass, iria tomar conta do palco, da sala, dos nossos ouvidos e das nossas almas. A devastação mental teria correspondência com a devastação de ruído que teria lugar daí a minutos.

A obra e o concerto de Dreamcrusher são, primeiramente, um grito de revolta (com batidas, samples e distorção) queer contra o abandono e a alienação (com o Estado como primeiro prevaricador) a que a parte mais vulnerável da comunidade está votada. Com um pauzinho de incenso a fumegar, era tempo de um outro fogo rítmico e ruidoso provindo de uma consola digital (ou DAW) começar a arder. Dreamcrusher é fogo que arde sem se ver, mas que se ouve (e bem).

A escuridão da sala e o espectáculo de luzes transformam o concerto numa desconcertante descarga de niilismo, num simulador de se ser presa de um xenomorph ou de um Yautja. Glass lança vaga após vaga de noise mesclado com footwork ou com uma glitch infernal, rebola e salta em palco (e do palco), abraça pessoas, mete-se aos empurrões no pit e, mesmo no meio das odes ao desespero que são várias das suas peças de noise, tem presença de espírito para sorrir.

No meio de tanto cliché sobre catarses em palco, haja alguém que demonstre exactamente isso. Que dizíamos nós acima sobre autenticidade (nem que seja da persona)? A de Dreamcrusher também se manifesta quando, logo a seguir a um agradecimento, Glass diz raivosamente que podemos aplaudir bem mais alto (“vocês podem aplaudir mais alto do que isto, putas!”), mas admite logo de seguida que também está nervoso porque é a primeira vez que actua por estas bandas.

A voz de Luwayne Glass ora é um uivo distorcido, ora é um berro demoníaco. A descontrução de estruturas é evidente (quando há alguma estruturação a coisa assemelha-se aos saudosos Injury Reserve) e é, no fundo, um soco punk por outros meios que não os três acordes do costume – aplausos para a t-shirt envergada por Glass de Too Many Humans….. desse bandão que eram os No Trend, cuja atitude continua a viver em concertos como este.

Esta foi mesmo a banda sonora do fim dos nossos sonhos; a violência sónica da obra da actuação de Dreamcrusher ilutra a situação em que um emprego de sonho se torna pesadelo ou se torna inalcançável, um amor desavindo esmagado por outrem ou pela vida, o dinheiro que esvoaça e nos torna perigosamente perto de vítimas da fome ou, simplesmente, a completa desilusão com os seres supostamente racionais que habitam este país e o planeta. Valha-nos um exorcismo de quando em vez.

 

Intervalo para voltar a agarrar o fôlego, descansar os ouvidos (mesmo com tampões distribuídos à porta da sala a barra foi pesada) e preparar a cabeça para o concerto dos Armand Hammer, grupo norte-americano de hip hop do mais fundamental que se tem feito.

 

Armand Hammer – SIRB “Os Penicheiros”

Nome MUITO aguardado do cartaz deste ano, os Armand Hammer são os actuais campeões mundiais do hip hop experimental (sem desprimor para outrem, como Denzel Curry ou os clipping.); desde Shrines (2020) que E L U C I D e billy woods (ainda há meses o perdemos a solo no Primavera Sound Porto por sobreposição com os Pulp) se tornaram numa potência sónica. Estamos perante toda a grandeza e crueza (e vemos a cara de billy woods e tudo) da dupla nova-iorquina, bastante dada a experimentalismo e a colaborações. E prolífica, que esta semana sairá um disco a solo novo de E L U C I D, REVELATOR.

Oriundos de Nova Iorque, cidade que deu o hip hop ao mundo, são guardiões da inovação (e da edição através da editora de woods, a Backwoodz Studioz) e arautos do humor e comentário mordazes, com produção ora a puxar para abstracta, ora mais concreta. No caso de woods, filho de académicos e exposto a outras realidades dado ter vivido no Zimbabué (que grande interpretação de Asylum, com woods a ser um profeta de braços abertos contra a ansiedade da letra), a corrosão das suas palavras tem um substrato que equilibra a profundidade intelectual e a vivência pós-contemporânea.

O álbum mais recente da dupla, We Buy Diabetic Test Strips (2023), é mais um capítulo dos aludidos comentários. O fio começa a ser desfiado no paralelo da miséria e da exclusão com a riqueza trazida pelo suposto milagre económico da gentrificação de Brooklyn, que transforma, na cidade mais rica do país mais rico do mundo, tiras de teste de glicemia no sangue para a diabetes num autêntico ouro e tábua de salvação financeira para os pobres, mutatis mutandis como as lojas de compra de ouro por cá há pouco mais de uma década, nas trevas do tempo da troika.

Os flows atípicos e as batidas mirabolantes dos Armand Hammer e seus colaboradores tornam-nos num caso muito peculiar, tal como o empresário homónimo, beneficiário do capitalismo que, paradoxalmente, explorou um filão de negócios na União Soviética no tempo da Nova Política Económica de Lenine. Não há espaço para beefs geográficos como outrora , que Kenny Segal, produtor de Los Angeles, teve direito ao shout-out da praxe, que é dele a produção desse malhão chamado Spongebob, num excurso do concerto pela obra a solo de billy woods. Bombas na batalha de Tora Bora, o prazer de guiar uma mota e o terror existencial por antecipação de ver morrer a mãe, tudo cabe na mente fervilhante de woods, numa fortíssima relação entre consciência e realidade.

Uma impressionante Woke Up and Asked Siri How I’m Gonna Die foi mais um cabal exemplo do cruzamento entre humor e comentário da dupla. A assistente virtual da Apple, Siri, a servir de oráculo da neurose e da claustrofobia de billy woods e E L U C I D, cuja interpretação foi de tal modo vigorosa que mais parecia uns Black Flag em rima.

Por seu turno, E L U C I D percorre o material do referido disco a solo e plasma em palco a sua mundividência a cair para o surreal. Em Niggardly (Blocked Call) ondeia sem sair do sítio e sem perder o pé rímico, num flow mais linear do que o de woods, este mais titubeante. Estes não são poetas de karaoke, são mesmo poetas do caos, descendentes de uma longa linhagem que começou nos The Last Poets.

Com Stonefruit (de Haram, disco de Armand Hammer e the Alchemist), atingiu-se um último apogeu do concerto (perdemos a conta aos mesmos, confessamos), clímax da corrosão do pessimismo antropológico do grupo. Tal como em Dreamcrusher, olhamos para trás e só vemos o público e parte da régie e nada mais, como se estivéssemos prestes a ser engolidos por um buraco negro, não sem antes de nos serem reveladas uma data de verdades pelos profetas da desgraça em palco.

Se o pit em Dreamcrusher foi literal, aqui foi verbal e mental, com uns quantos punhos no ar e rimas do duo berrada a plenos pulmões. A única veleidade dos Armand Hammer é um compromisso inabalável com a curiosidade e com o veneno.

 

Assim findou o nosso primeiro dia de OUT.FEST, com três actuações que já figuram na lista de melhores concertos que vimos este ano. E a procissão ainda ia no adro.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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