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Depois da intensidade assinalável do dia anterior, o OUT.FEST estava em velocidade de cruzeiro na comemoração das suas duas décadas de existência. Mercê das habituais dificuldades de trânsito de uma sexta-feira ao fim da tarde, fomos a toque de caixa pela Rua Almirante Reis acima por entre o Barreiro Velho, passando à porta do Teatro Cine do Barreiro (sala onde teve lugar o congresso da oposição democrática de 1973 e que espera por melhor aproveitamento), tendo por destino a Igreja Paroquial de Santa Cruz, esta já local de várias romarias memoráveis do festival.
Ainda conseguimos apanhar parte da actuação de Fujita Yosuke, aliás FUJI||||||||||TA, produtor japonês determinado a tirar partido da acústica do templo para mostrar algo que extravasa o âmbito da composição para se tornar em estudos sónicos simultaneamente abstractos e de reinvenção, mas também compenetrados na tradição musical japonesa – aqui em foco a música gagaku, da antiga corte imperial em Quioto.
Menos arrojado do que, por exemplo, Ryoji Ikeda, FUJI||||||||||TA mostra-nos um encadeamento e uma lógica melódica distantes da tradição ocidental, não obstante a maquinaria contemporânea e sua fricção sonora. Depois de largos minutos de abrasão, um término meditativo e espiritual com recurso ao shō, instrumento tradicional japonês (de origem chinesa) de sopro.
Finda a profissão de fé no templo, um outro aspecto que distingue o OUT.FEST dos demais: a paragem das hostilidades para jantar. Com o frenesim de muitos festivais perde-se algo fundamental para uma experiência decente, a descontracção. É bom não ter de planear uma refeição pelo meio dos buracos da agulha do horário.
Manda uma tradição pessoal que se vá em romaria aviar umas lulas grelhadas e umas farófias, que prota, vitaminas, hidratos de carbono e açúcares são necessários para uma boa campanha barreirense. Feito o intervalo, retomou-se o plano e foi-se até à ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios para o fulcro deste dia de festival, na qual o trio de Inês Malheiro, Ariana Casellas e Violeta Azevedo já se apresentava na sala maior de mais um local que tem vindo a encher páginas de ouro do certame.
Inês + Arianna + Violeta
Fruto da boa prática das residências artísticas (neste caso, de Inês Malheiro no GNRation, em Braga), a instância de Malheiro (vozes e instrumentação electrónica), Violeta Azevedo (vozes e flauta transversal) e Arianna Casellas (vozes e violoncelo) lavrou o acórdão de Volatile Poem, trabalho de troca de ideias – vocais e instrumentais – e de desafio às estruturas tradicionais da composição, através de um empirismo muito próprio.
Pelo que se assiste, Malheiro joga na dualidade vocalizações-efeitos, num arsenal que lembra o melhor de Eartheater e Holly Herndon, aliada à flauta de Azevedo (cujo relevo sónico é aqui fundamental, como já era nas Savage Ohms) e ao violoncelo de Casellas (imaginemos os Etudes Boreales de John Cage, expandidos com uma componente vocal). O rumo traçado pelo trio passa com toda a propriedade pelo etéreo e pelo onírico, servindo as partes estritamente vocais, para nós, de autênticos interlúdios.
As oscilações pairam pelo éter e embalam ao mesmo tempo que disparam em várias direcções: harmonizações de voz, drones, uso de samples e de efeitos e a flauta de Azevedo e o violoncelo de Casellas a proporcionar altos voos dentro dos limites dos respectivos instrumentos. Talvez a busca do belo não tenha sido o principal fito do trio quando se lançou nesta empreitada, mas que (também) lá chegou, chegou.
Música de câmara exploratória para estes tempos de pós-verdade? Provavelmente. E com qualidade para dar e vender? Seguramente.
A configuração da ADAO leva-nos a fazer piscinas entre duas salas, com a gigante comodidade de se ter apenas de descer (ou subir) umas curtas escadas e atravessar um corredor. A curiosidade levou-nos a picar a actuação de Mariam Rezaei, produtora anglo-iraniana e, sobretudo, pensadora (ou não fosse doutorada em assuntos do som) de sons cuja missão é a de ampliar o espectro do gira-discos enquanto instrumento. Meio artista e meio guerrilheira do vinil, transforma a agulha do gira-discos não numa metralhadora à Peter Brötzmann, mas uma arma de atordoamento prazeroso.
Não importa se os discos estão colados por fita-cola ou se a distorção é quase cruel para o material original, que Rezaei ora restaura sons, ora destrói suposições. Chamar-lhe “DJ set” é redutor e retirar-lhe a completa desconstrução do conceito de passar som e inserir a coisa na categoria de “música experimental” ignora a inovação que vem da abordagem ao vinil. Rezaei destrói e volta a montar, parte e reparte e daí nasce nova arte. Uma bem conseguida incursão entre o analógico e o digital – que não seria a última, já que o festival é tradicionalmente pródigo nestes “conflitos” e este ano não foi excepção.
Donna Candy
Geograficamente, Donna Candy situam-se entre Bruxelas e Marselha e, musicalmente, em territórios do noise rock e do experimentalismo militante. Não precisam de provocação visual, ponto a seu favor nestes tempos de superficialidade e leviandade, mesmo entre a chamada música alternativa/experimental/riscar o que não interessa. O trio de Js Donny (baixo), Lila Latz (bateria) e Nadja Meier (vozes, muitas vozes) toma posições em palco e desata a distribuir peso, muito dele provindo de Blooming, disco de estreia editado no ano passado.
Um arranque tímido deu lugar a um crescendo de tensão e de distorção, testando a elasticidade dos pescoços, em particular na segunda metade do concerto, para nós a mais conseguida. Alternância abrupta de tempos na bateria, um baixo que se transforma no fio condutor e Nadja Meier a encarnar uma míriade de personalidades vocais. Uma agressividade tributária dos Boris, dos Unsane ou dos Beastie Boys de Sabotage ou Gratitude e uma garra sarcástica típica da actualidade.
A transfiguração da voz através de efeitos é o principal sinal distintivo do grupo e o seu contributo no desenvolvimento de mais uma linguagem do noise, a da garganta unida à tecnologia. Ao vivo resulta num misto que lembra os Battles de Atlas e que pode bem ser uma evocação de Poly Styrene (RIP), SOPHIE (RIP) e a paranóia discursiva dos Gilla Band – e, por vezes, com uns laivos de grindcore.
O post-rock sludgeiro de quebras vigorosas de Dizzy Break Part 2 é a súmula do ideário do trio: euforia (queer, mas acabando por se tornar universal), noise, repetição esmagadora e uma oralidade (?) na encruzilhada entre o aterrador e o abstracto. Ou, deixando-nos de tretas e sendo mais sucintos, uma jarda e tanto.
Já não seria apenas o pescoço a mexer-se com o que estava agendado de seguida. Nazar, produtor angolano radicado em muitos sítios e autor do “rough kuduro”. Siga a piscina.
Nazar
Uma respiradela lá fora e uma piscina até à sala das colunas para conferir mais uma proposta de reinvenção típica do OUT. FEST. In casu, tratou-se da actuação de Nazar, projecto de Alcides Simões, angolano que cresceu na Bélgica, que voltou para Angola e que entretanto viveu pela Europa, mas sempre com a consciência em Angola, em particular no que diz respeito à guerra civil. Nazar é filho de Alcides Sakala Simões, militante, comandante e deputado da UNITA, uma das forças em contenda na guerra civil angolana e maior movimento de oposição ao regime do MPLA.
O trauma colectivo angolano (interno e também com ramificações na diáspora) está bem patente na obra de Nazar, em trabalhos como a estreia com Enclave (Hyperdub, 2018) ou Guerrilla (Hyperdub, 2020), sem esquecer . A dureza da realidade reflecte-se naturalmente na obra, originando aquilo a que o produtor chamou “rough kuduro”. Quando algumas composições têm por título Retaliation ou Arms Deal, a reinvenção do kuduro já extravasa para um âmbito político que requer pôr o cérebro a mexer e não apenas os ossos.
Com efeito, o desconforto aural ocasional é propositado, seja pela distorção ou pelos samples de field recordings e de voz (por vezes em umbundo, língua dos ovimbundos, a etnia de Nazar), alguns repetindo que há uma arma apontada à cabeça do narrador, sendo a batida um dos poucos remédios para combater o traumatismo psicológico na memória. Vestido de preto e equipado com um colete que podia passar por balístico, a actuação é também uma representação cénica que perfaz um paralelismo entre a violência vertida pela História no material (e no próprio historial de família de Nazar) e o vigor da dança como protesto e catarse.
Nazar não se ficou apenas pelas suas malhas, havendo também tempo para um excurso por Na Paz, de DJ Rick e DJ Wilson (do “rough kuduro” para o “deep kuduro”, cremos), aqui noutro tipo de militância. Militante também foi o público, que rodeava o palco e não parava quieto. Uma raiva que levou à dureza e à reinvenção e ao gáudio.
Da reinvenção de um género partimos para nova piscina e para nova experiência de substituição instrumental. Nome que no trabalho de casa para o festival nos suscitou grande curiosidade, os France, trio francês (pois, eheh) também vieram virar tudo de pantanas ou, para citar uns calhordas que deram cabo de certa série de televisão que metia espadas e dragões, subverter expectativas (mas aqui no bom sentido).
France
A selecção francesa que interessa apresentou-se como um trio (Yann Gourdon na sanfona, Jérémie Sauvage no baixo e em exclusivo barreirense, Romain Simon, programador do espaço Accueil Froid Nuke em Amiens) e como uma força da natureza que é a banda-tipo do OUT.FEST: pegar num conceito aparentemente densificado, neste caso o do power trio, e surpreender com algo completamente “fora”. Se o doutor Emmett Brown não precisava de estradas para o DeLorean, os France não precisam de guitarras eléctricas para chegarem onde querem – e nos arrastarem com eles, indo nós de bom grado.
No lugar da guitarra eléctrica estava uma sanfona, cujo girar da manivela não tardaria a mudar percepções, numa iconoclastia poderosa e extremada. Gourdon e Sauvage desceram até à plateia, colocaram-se de costas, mandaram uns goles de aguardente e cerveja e daí a minutos já ninguém se lembrava de que as guitarras eléctricas existem e que, até ao início do concerto, eram parte inalienável de um power trio. Simon dá o mote com as baquetas, Sauvage acompanha e, não obstante alguns solavancos com o som (nem os cabos nem o amplificador aguentam tanta magnificência), Gourdon dá início a uma viagem inigualável.
A hipnose (que logo nos primeiros minutos lembrou qualquer coisa de Psychic Ills; RIP Tres Warren) impelia ao movimento e à partilha do prazer do momento e de uns tragos na garrafa de aguardente. Com a repetição da secção de ritmo e a expansão circular da melodia da sanfona está-se perante um neo-kraut que resulta em cheio e que prende a atenção em toda a sua enormidade sonora. Gourdon mandas uns tragos de cerveja e aguardente, fecha os olhos, dedilha as cordas da sanfona, edifica um psicadelismo que se julgava impossível e deixa-se levar, embatendo no público que nem ondas na rocha.
Com (à primeira audição) pouco os France fazem muito. Danem-se os golos de Fontaine, Platini, Zidane e Mbappé, que esta marselhesa é de bandeira. Avante, filhos do OUT.FEST, que os acordes da glória chegaram.
Não há outra maneira de descrever um concerto magnífico como o de France: é um Dopesmoker mas com CRF em vez de ganza (e CRFdrinker soa bastante mal). Três anti-heróis picarescos redefiniram conceitos e consagraram-se que nem Napoleão em Austerlitz.
Muito proveitosa e avançada ia a noite, restando apenas o seu remate com Zancudo Berraco, projecto de Henrique Apolinário que deitou abaixo mais muralhas estilísticas e aumentou ainda mais a parada no que respeita a danças frenéticas neste OUT.FEST.
Zancudo Berraco
Última piscina da noite em direcção à sala das colunas para testemunhar uma bomba chamada Zancudo Berraco. Engenho explosivo desenvolvido por Henrique Apolinário, autêntico argonauta do som (é também engenheiro de som e editou no ano passado pela Favela Discos Fusão, uma sucessão de experiências com reverberações) vindo do Barroso para botar que tem com Sistema de Luz, editado pela Tesla Tapes.
Apolinário sente o que está a fazer, puxa pela eurorack, berra aguerridamente (como Glenn Gould e Keith Jarrett em tempos vocalizaram diante dos seus pianos) e provoca um fervoroso bailarico saloio. A intensidade das batidas faria Luke Slater corar de vergonha e a rapaziada profissional das pistas de dança do technão desatar a assobiar o “Fiu! Fiu! Fiu!” da praxe; já os convivas do Barreiro corresponderam com um turbilhão que não parou até ao silêncio e às palmas.
Numa sala situada ao lado de uma linha do comboio e que durante décadas serviu de quartel de bombeiros nada como uma desconstrução sónica aparentada a levar com um comboio em cima para meter uma sala repleta a dar tudo. Um suadouro exaltado a 130 ou mais BPM, acidez a monte éter fora e um estremecimento de ossos muito bem-vindo para terminar os dias úteis da semana e, para nós, a primeira metade do festival.
Tal como em Nazar, a sala das colunas da ADAO e o público do OUT.FEST assistiram a notícias sobre a reinvenção da música de dança. Dançou-se o futuro, portanto.
Terminado o ardor rítmico estava fechado o nosso segundo dia de OUT.FEST. Das dicotomias (analógico e digital e guitarras eléctricas e seus substitutos) rezou um dia memorável.