Reportagem


OUT.FEST 2024

Para o último dia do OUT.FEST ficaram a construção de pontes, a demolição com baixos e os contos de um malcriado.

Sociedade Cultural e Recreio 1.° Agosto - Paivense

06/10/2024


© Ricardo Almeida

Tudo o que é bom (geralmente) acaba e o OUT.FEST deste ano não foi excepção. Os anos redondos deram para mais um dia de concertos, mais ligeiro em matéria de horários mas mantendo o assunto.

Hoje concentrado na Sociedade Cultura e Recreio 1.º Agosto Paivense, mais uma colectividade que reflecte a comunhão do OUT.FEST com o Barreiro, o encerramento do festão dos vinte anos do festival também ali cumpriu a missão de valorizar o Barreiro e o seu património e de estimular a comunhão entre o festival e a cidade (mais sobre isto lá para a frente).

Depois da comemoração do cinquentenário de outra grande instituição nacional sita no Largo da Anunciada em Lisboa, rumámos ao Barreiro para um serão de domingo que valeria a pena, mesmo com sabor a despedida. Casa muito composta e com convívio entre habitués da associação e espectadores do festival, o SCR Paivense viu muito pé de dança, mas também um trio que ergueu pontes e ainda uma dubzada valente.

Ghosted

Não fizemos ghosting (quem o fez só ficou a perder) a Ghosted, o trio free jazz e ambient (é jazz e É ambient!) de Andreas Werliin (bateria), Johan Berthling (baixo eléctrico e contrabaixo) e Oren Ambarchi (maquinaria). Com sobriedade e correspondente solenidade do público, o trio foi desfiando reflexões instrumentais assentes na interligação entre a secção de ritmo e as paisagens que Ambarchi ia criando.

Depois de largos minutos de de meditação numa onda à Bohren & der Club of Gore veio a avulsão de matriz Weather Report/Ohm, tonificada por incursões pelo ruído. Deu-se uma transformação do concerto num glorioso crescendo-tormenta (como o de André 3000 em Coura), numa tempestade verdadeiramente necessária, cujo alerta meteorológico era único de que precisávamos nesta noite, com um combate entre a secção de ritmo num ringue de espinhos sonoros criados por Ambarchi.

Uma acalmia relativa chegou e, com ela, o fim do concerto. O pulmão da mestria de três veteranos foi, bem, fantasmagórico.

Ali ao lado no bar cantaram-se os parabéns ao menino OUT.FEST, com direito a bolas de manteiga para todos os gulos-, interessados. Doce é também a memória.

Na sala, a DJ marroquina ojoo percorria uma playlist cosmopolita de dança-protesto que incluiu Pull Up the People de M.I.A. (nos tempos em que era mais sã da cabeça) e Persian Pulsewidth de Tapes. Pelo bar, a música era outra: comentários ao jogo do FC Porto contra o Braga, reminiscências de dias e edições passados do festival e apostas sobre outro “festival” vindouro, o do Orçamento do Estado.

Lá no fundo, estava-se apenas a descansar enquanto se esperava que o “malcriado” DJ Anderson do Paraíso subisse ao palco.

 

DJ Anderson do Paraíso

Figura de proa do actual funk brasileiro, o produtor e passador de discos de Belo Horizonte (ou, para os locais, Belzonte) é também um proponente do recente ressurgimento (pelo menos para quem não ligou) do género, a par de DJ RaMeMeS (o intitulado “destruidor do funk” de Volta Redonda, Rio de Janeiro) e de DJ K (de Heliópolis, em São Paulo). Tal como na obra dos colegas de batida, o minimalismo sónico e a violência e a hipersexualização constam do seu ADN artístico, enquanto produtos do seu meio e de certa herança de outros que se aventuraram por estes caminhos noutros tempos.

Mal começaram os primeiros versos e samples já se adivinhava a palavra-chave da actuação: putaria. Ao contrário do saudoso MC Catra, que avisava que o começo da putaria estava iminente, Anderson do Paraíso vai directo ao assunto com Vai Começar a Putaria (de Queridão, editado este ano pela Nyege Nyege Tapes) e a partir daí foi sentar a vara num público primeiro tímido, depois sequioso – parte dele conhecedor do que ia saindo da mesa de Anderson do Paraíso através do PA.

Não se ficou pelo seu material, percorrendo também uma lista de reprodução de compatriotas como (entre outros) DJ Lucas do Taquaril (Só Cavucada Do Jeito Que Ela Gosta é malha), DJ Ws da Igrejinha (versão com bolinha vermelha para uma revisitação d’O Capuchinho Vermelho) e Se Tá Solteira (de FBC, Mac Júlia e VHOOR, com um refrão pastilha elástica bruto da xixa ), esta levantando o público mais afoito. Tudo a rasgar convenções do funk brasileiro, tudo impróprio para o Diácono Remédios e para ofendidos profissionais e tudo próprio de um festão de after que teve lugar em horário nobre.

Eis os contos de um malcriado: batidas engatilhadas e repetitivas e os versos de sangue, suor e sexo (a afeição por fluidos corporais desta geração de produtores é notável) fecharam em grande plano o capítulo da reinvenção da música dançável deste OUT.FEST.

 

Intervalo para apanhar ar e dar dois dedos de conversa no campo multidesportivo exterior e regresso à sala para um estoiro de baixos e efeitos com o selo de qualidade sòn du maquís. E, claro, lamentando-se o fim próximo desta edição.

 

sòn du maquís

Um tipo chamado Stefan Dubs não está propriamente a esconder aquilo ao que vem. E aquilo que o trouxe ao OUT.FEST foi o seu projecto sòn du maquís, uma bomba de dub que quase de certeza que pôs à prova as agulhas do sismógrafo mais próximo.

Herdeiro de especialistas em destruição sónica como The Bug ou de kode9 e Spaceape de Memories of the Future, Dubs actuou no meio da sala, rodeado por um público de olhos arregalados e corpos irrequietos que partia chão, envolto pelos ecos e reverb de um psicadelismo dub disparado por um maquisard que percorria toda a biblioteca rítmica do género. Para além do bom espectáculo de luzes a que fomos habituados no festival, destaque para o som, que devidamente enquadrou as nuances (que as há) da dubalhada sonante.

Acima falámos numa biblioteca do dub. Com efeito, Dubs está confortável a recriar o Studio One no Barreiro ou a piscar o olho ao trip-hop como se fosse de King Midas Sound. Um concerto genial na sua contundência.

Como término desta edição do festival, Chuquimamani-Condori (cujo chapéu remetia para uma homenagem involuntária a Michael Gira) e a sua cumbia psicadélica ou huayno surreal, com recurso a uma gloriosa keytar (juramos que ouvimos ali um pouco de Jan Hammer). As percepções daqueles géneros iam-se desfazendo numa efervescência que puxava para um ruído estranhamente dançável.

A sua memória pessoal encontra-se aqui com a pós-contemporaneidade, onde não há peias em mesclar musicalmente a sua identidade aimara (povo ameríndio habitante da Bolívia, Peru, Argentina e Chile) com sintetizadores da vaporwave. Pelo que se viu, a coisa ia correndo de feição à hora da nossa saída. Foi bonita a festa e a bola de manteiga estava boa, pá.

 

Epílogo

 

Em vinte anos, o OUT.FEST valorizou não apenas a música mais vanguardista e lateral à música-negócio (não que nesta não haja qualidade, que há), mas também o Barreiro e seu património histórico e cultural, transformando a imagem da cidade e, por conseguinte, toda a relação com aquela de quem está envolvido com o festival, em particular os visitantes (e vários dos artistas, diga-se). É caso único na localidade? Não, que até há bem poucos anos o Barreiro Rocks tinha um efeito semelhante.

Ainda que em circunstâncias diferentes, a relação afectiva que se estabelece com o festival e com a cidade é, mutatis mutandis, semelhante à que se tem com Paredes de Coura – e como a que festivais como o Milhões de Festa, o Tremor, o Amplifest e o Semibreve tinham/têm com Barcelos, São Miguel, Porto e Braga, respectivamente. Não obstante as diferenças de escala entre os dois festivais (e seu modelo de negócio e organização), ambos são sinónimo da localidade em que têm lugar.

Quer o OUT.FEST, quer o (Vodafone) Paredes de Coura dão um seu contributo precioso para revitalizar o Barreiro e Coura. Tornam as suas terras notícia (por bons motivos), trazem curiosos (os estreantes) e fiéis (os veteranos), contribuem para o engrandecimento histórico, cultural e económico da zona e para o património afectivo dos visitantes. Procuram ter o menor impacto possível sobre o bem-estar da população local e sobre o ambiente e, cada vez mais, são um chamariz de visitantes estrangeiros mais respeitadores do que o turista comum.

No caso específico do OUT.FEST, é toda uma descoberta de salas e lugares do Barreiro e, para os mais intelectualmente curiosos, da sua importância histórica e sócio-cultural. A quantidade de associações recreativas e culturais (cerca de sessenta em actividade) revela uma cidadania que se começou a construir há mais de século e meio, desde a fundação da Sociedade Filarmónica do Barreiro em 1848 (que em 1870 se dividiu na Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense “Os Penicheiros” e Sociedade Democrática União Barreirense “Os Franceses”) e com a Sociedade Filarmónica Agrícola Lavradiense em 1867. Trata-se de um fenómeno que começou na elite social e que se foi tornando, com a industrialização do concelho, em manifestação de cariz popular.

As salas que outrora viram sessões de cinema, chás dançantes e demais bailes (como os da “pinha”), eventos educativos, desportivos e políticos (ou musicais com relevo político, como as actuações de José Afonso e Carlos Paredes nos anos de estertor da ditadura do Estado Novo), com o festival vêem também música popular de vanguarda, com uma legião de público multinacional. Envergando t-shirts, camisolas e tote bags de bandas, festivais e editoras do underground, são novas relações culturais que se formam, muitas delas com início na Internet e desembocando nos palcos barreirenses. Mesmo com algum sarcasmo e escárnio do hipsterismo militante, a autenticidade da experiência revela-se na fidelidade do público e no seu sentimento de pertença. Nada como fazer as coisas com genuinidade e alma, muita alma.

No nosso caso pessoal e sem desprimor para outras experiências – pessoais e profissionais – no Barreiro, desde a primeira vez que fomos ao OUT.FEST que o festival passou a significar várias coisas: i) salvo rearranjos de calendário, é o primeiro festival pós-Verão desta nossa melomania (se o tempo estiver bom o sentimento é o de que é o verdadeiro último festival de Verão), antecedendo (se por lá andarmos) o Amplifest, o Semibreve e o Le Guess Who?; ii) é uma oportunidade de testemunhar artistas e projectos numa perspectiva preferível à do típico recinto de festival; iii) não obstante a notável programação de várias salas de Lisboa (a nossa “área de operações” típica), a concentração de qualidade em festivais como o OUT.FEST não é despicienda, bem pelo contrário – é mesmo uma aliciante e um bálsamo de esperança para a mente.

Sob os motes costumeiros do festival de reinventar, desconstruir, substituir e lançar de novo, foi uma edição especial de aniversário que se traduziu num festão de arromba, sempre com uma componente de surpresa que é também marca registada do festival – parece que o trabalho de casa que se faz nunca é suficiente, o que aqui até é benfazejo. Com sobriedade mostrou-se, mais uma vez, a simbiose entre o Barreiro e o festival, seja nos pratos de um DJ ou num prato de lulas grelhadas.

Para além dos efeitos de fortalecimento de relações entre melómanos, fica a confirmação de que tratar quem gosta de música como gente e não como gado vale a pena. Estão de parabéns a OUT.RA, associação cultural organizadora do festival, bem como todos aqueles – pessoas singulares e colectivas – que têm vindo a fazer do festival aquilo que é, um colosso discreto onde se expandem ouvidos e mentes dos melómanos. Que cá estejamos todos para os trinta, os quarenta, os cinquenta e por aí fora.

Virando de pantanas certa tira d’O Gato Mariano sobre o festival: no OUT.FEST há mesmo sempre qualquer coisa. Qualquer coisa para ver. Parabéns e até para o ano, OUT.FEST.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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