Reportagem


OUT.FEST 2024

Em dia de feriado nacional, no Cinco de Outubro do OUT.FEST implantou-se toda uma república de ruído, rimas, percussão e loops.

SIRB "Os Penicheiros"; ADAO

05/10/2024


© Ricardo Almeida

Sábado, cinco de Outubro de 2024. Feriado nacional e segunda metade de OUT.FEST a todo o vapor. Se o dia anterior foi de reinvenções e de como substituir instrumentos amplia conceitos, o quadro deste sábado de OUT.FEST seria mais extenso: de revelações, de duplas em que se juntou o útil ao agradável (ou a fome com a vontade de comer), de ressurreição de formatos e de vagalhões de ruído.

 

KAKUHAN – SIRB “Os Penicheiros”

Final de tarde e incursão pela nossa estimada sala d’Os Penicheiros para apanhar o duo japonês KAKUHAN (diz-nos uma pesquisa breve que, mediante uma tradução japonês-inglês-português, a palavra significa “mistura de vários elementos”). Dupla de certa maneira improvável do violoncelista Yuki Nakagawa e de Koshiro Hino, guitarrista desse relógio-banda chamado goat (os goat japoneses, que os suecos também são uma óptima banda), é um encontro de contrastes, passe o lugar-comum.

Dentro dos contrastes há pontos de equilíbrio ou, se se preferir, de conjunção. Alternando ambos entre uma ala de ruído e outra de prevalência do ritmo, oscilam vertiginosamente, de composição para composição, entre as experiências deambulantes de Keiji Haino e o nervo ruidoso de Ben Frost e Pete Swanson (EXTREMAMENTE ruidoso, no caso deste).

E quando não há esse encontro há um duelo analógico versus digital (como por cá já se ouviu em Fashion Eternal, combo de Aires, mago do Colectivo Casa Amarela e o baterista João Valinho). Os espaldares da sala tremem agora com outro tipo de ginástica, esta mais visceral e acutilante.

Assim se prosseguiu até ao fim de um concerto que foi uma ida ao inóspito.

 

Se ontem a coisa esteve a ferro e fogo, hoje só diferiu na toada sónica. Mais uma tradição gastronómica de OUT.FEST cumprida (ou repetida, vá) e azimute novamente marcado para a ADAO.

 

CAVEIRA – ADAO

Banda-instituição do underground nacional, os Caveira são dos pouquíssimos repetentes em toda a cronologia do festival. Ao longo de praticamente vinte anos e por várias vezes condensaram, em pessoas e som, o que de melhor se fazia por cá, já desde os tempos de Joaquim Albergaria na bateria e Rita Vozone na guitarra. Liberdade é aqui palavra de ordem e o fenomenal Ficar Vivo (2024) é disso prova plena.

Nesta hidra do noise a única cabeça permanente é a de Pedro Gomes, antigo programador do festival e guitarrista do grupo, que coordena a orquestra descomunal usando a guitarra como batuta. Tal como outrora, a formação da banda é uma selecção de luxo (bem superior à de um tal Martínez) e o resultado em campo é magistral.

Para além de Gomes, fazem agora parte de Caveira Miguel Abras (baixo), Pedro Alves Sousa (saxofone) e Gabriel Ferrandini (bateria). Abras e Gomes estão em palco de costas assegurando a ubiquidade das cordas agrestes, ao passo que Ferrandini e Sousa confrontam-nos com texturas crescentemente tensas, saldando-se o conjunto numa beleza agressiva como poucos sabem fazer (casos dos Swans, de Sly & The Family Drone e de John Zorn e para aí metade dos seus três milhões de projectos). Eis um quarteto de operários do noise, que transformam paulatinamente a sala da ADAO numa fornalha onde arde uma liberdade sónica exultante – e onde não há Deus que nos salve (Daniel 3:17, a contrario sensu).

É jazz ou é ambient? É porrada codificada. É liberdade criativa e de improviso a levantar vagalhões atrás de vagalhões de noise, é um sonho dionisíaco. A caldeirada de drones, ritmos alucinantes e de ruído é um salto para o desconhecido e um grito contra a agonia e o atavismo criativos.

“Ficar vivo”, dizem eles. Depois de se levar com uma tormenta destas fica difícil, tão difícil que somos uma espécie de náufragos da Medusa só que no Barreiro, mas a praia a que se chega é a da felicidade.

 

Por curiosidade, fez-se uma piscina até à sala das colunas para conferir uns minutos da actuação de Speaker Music, veículo de DeForrest Brown Jr., produtor e pensador-recuperador de tradições que foram vanguardas e que se querem novamente nessa condição, como o afrofuturismo. Encarnando nos ossos (tal como o público que rodeava o palco) a multiplicidade sonora compilada no seu Mac e trabalhada na mesa de mistura, foi assertivamente levando a água ao moinho comum.

Ao estar-se diante de uma malha como D.T.A.W.O. (Deprogramming The Atonist World Order) percebe-se os intentos do empirismo de Brown: o triunvirato da desconstrução sónica do presente aliada ao mito e manifesto afrofuturista dos Drexciya em correlação com deep house e o techno é um trabalho de laboratório sónico mais pensado do que muita electrónica que se ouve por aí.

De seguida, não saídas da mitologia mas de uma bifurcação de talento, estavam as H3IR, dupla que anda a redefinir o hip-hop ao fim de cinquenta anos de vida deste.

 

H3IR

Se a incursão desta edição do OUT.FEST contou um nome já consagrado do hip hop dito experimental, os Armand Hammer, o dia de hoje teve uma revelação que no fim do concerto já tresandava a certeza: as H3IR, duo composto pela produtora e DJ de Nova Jérsia JWords e a MC (por vezes bem mais do que isso) de Nova Iorque maassai. Ambas de cabeça erguida e sem tretas, lançam-se a uma aula de ritmo e poesia bravios.

Maassai não tem uma voz, tem um arsenal delas. Quando puxa pela melodia lembra-nos Kelela, quando parte para a rima pura e dura, com a força de MC Lyte ou o flow de Missy Elliott. Em Glitch in Time expõe toda a neura que vai nela (“what are they gon’ do? What are they gon’ say? Do you know they wanna play dumb?”) e em Take a Hold versos de surrealismo (ou de realismo mágico à moda de Brooklyn: “You don’t even know my name/you just want to take my big spirit and throw it in a flame.”

Nestes anos em que People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm e 3 Feet High and Rising chegam a meio dos trintas, do lado da produção e com toda a urgência ouvimos evocações de Goldie, de DJ Premier (aquela boom bap gostosa), de RP Boo (que para além de ser um dos grandes desta vida deu uma lição de partepistismo naquele mesmo palco há dois anos) e de Omar S (na aludida Take a Hold, malha de topo da dupla), tudo isto balizando o futuro que vemos à nossa frente. Não se trata de descobrir a pólvora, mas de deslindar uma outra carga propulsora para o género.

Não tendo uma bola de cristal nem confiando muito no Bruxo de Fafe ou no Mestre Alves, ainda assim atiramos a premonição de que as veremos em palcos maiores e, como tantas vezes sucede, recordaremos o concertaço do OUT.FEST como a fagulha que por cá acendeu aquele fogo rímico e rítmico.

 

Mal há tempo para processar mais um concertão desta edição do festival, que na sala ao lado é hora de testemunhar o corta-e-cola analógico de Vladimir Lenhart, simultaneamente artesão, arqueólogo e etnógrafo das cassetes, acompanhado em palco pela comparsa e da comparsa Tijana Stanković. Não que aquela tripla condição artística seja muito rara, mas ter por único ponto de partida e objecto as cassetes rareia por aí.

 

Lenhart Tapes e Tijana Stanković

O OUT.FEST é um festival cujo público nunca desistiu de formatos, sejam estes as cassetes ou o vinil. Por coleccionismo (do verdadeiro, não daquele de quem que compra vinil sem sequer ter um gira-discos), por devoção melómana, por teimosia, por opção editorial ou técnica ou porque, no caso dos passadores de discos, o vinil era o meio mais apreciado, aqueles formatos nunca morreram.

Vladimir Lenhart enquadra-se em várias daquelas categorias. Com o recurso a leitores de cassetes (incluindo um walkman) constrói narrativas a partir de loops trazidos da música balcânica, seja ela mais tradicional ou turbofolk, com uns pós de ruído industrial. Aqui não se afina guitarras, antes se põe cassetes a rodar, que o passado não é entulho tecnológico.

A acompanhá-lo no palco da sala das colunas está Tijana Stanković, violinista de voz fantasmagórica, doutorada, descalça e com uma farpela que a denunciaria, noutros tempos, como uma rainha da disco sérvia (pense-se, por exemplo, em Bebi Dol). Mais ainda, o violino não foi um mero adereço, que chegou a compartilhar a dianteira com as cassetes.

Brilharam as fitas das cassetes de Lenhart e as lantejoulas da capa de Stanković, que ao corpo dos loops dá a voz e, por vezes, põe ordem no caos da arqueologia sonora daquele. Ponto alto? Mejremo, canção-colagem de melodia turca (a perene influência turca na música balcânica aqui em evidência) e letra gorani, constante de Dens, disco colaborativo de ambos (e não só) editado no ano passado.

A teimosa opção artística de Lenhart coloca-o à margem, como um fora-da-lei sónico, como um haiduque. Alinhado com uma colaboração como a de Stanković torna-se guerrilha musical.

 

Após o inesperado efeito (ao vivo) de Lenhart e Stanković ala, que se faz tarde, para o concerto de Valentina Magaletti e Nídia, verdadeira junção da fome e da vontade de comer.

 

Nídia e Valentina

Dentro destas celebrações dos vinte anos do OUT.FEST não cabe apenas a rememoração de duas décadas de histórias (reunidas num mui recomendável livro) e de sons, mas também de iniciativas e instituições nacionais a que o festival dá voz e, consequentemente, visibilidade, como é o caso da Príncipe Discos, editora de Nídia e que tem por entre os seus fundadores Nelson e Pedro Gomes, que fazem também parte da construção do festival em várias dimensões. Se Nídia e a Príncipe têm sido preponderantes na definição da identidade da actual música de dança nacional, Valentina Magaletti, baterista e percussionista italiana de muitas colaborações (ainda no ano passado partiu ali a casa toda com os Holy Tongue, dose repetida este ano na ZDB), tem edificado uma obra que é a redefinição da percussão contemporânea.

A musicalidade de Magaletti provoca-nos um reflexo quase pavloviano: o de ouvir todos os projectos em que se envolve. É um dínamo ao vivo e hoje ainda mais, saltando enquanto espanca a marimba quase como um ultra salta pelo seu clube ou quando se desdobra na percussão e provoca a ilusão de ter quatro (ou mais) braços, sempre com o ubíquo toque de Midas na descoberta da pulsão percussiva certa.

Por seu turno, Nídia revela aqui a sua evolução imparável. Sem nunca ceder a exageros e situando-se no virtuosismo da proporcionalidade rítmica, parece ter sempre um ás na manga: em Estradas, a explosão repentina de um (belíssimo) sample após a quebra dá outro fôlego à criação e a produção em Nasty é um monumento dentro de outro monumento.

A batida do kuduro cruza-se magistralmente com o ímpeto percussivo de Magaletti. Os timbalões pari passu com os pads numa batucada cerebral e física de enorme efeito. O mais importante é a expansão sónica em relação ao estúdio; Mata ao vivo vale por dez, num genial envolvimento da repetição do sample de voz . ‘Tá a bater? Ya!

Uma nota de (grande) apreço para os fabulosos espectáculos de luzes a que temos assistido no festival. Se em todos os concertos que vimos (logo desde Dreamcrusher) a conexão entre sons e luzes estava afinada, em Nídia & Valentina o nível foi para lá de altíssimo, ajudando a construir uma mise-en-scène excepcional.

O mano a mano de estúdio continuou fortemente aumentado em palco, com correspondente sala sem um pé quieto. No país dos cantares ao desafio, assistimos neste concerto à fundação das batidas ao desafio.

 

Para este escriba a noite terminou ali mesmo. Em dia de feriado nacional, no Cinco de Outubro do OUT.FEST implantou-se toda uma república de ruído, rimas, percussão e loops. Este é o Outono do nosso contentamento.

 

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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