Reportagem


Post Iberia Fest

E quando faltavam quinze minutos para as duas da manhã fez-se silêncio. Cá esperamos pela edição do ano que vem, com a certeza de que o valor acrescentado foi criado.

Stairway Club

22/07/2016


© Filipe Sampaio

Nos últimos anos, tem-se assistido ao desdobrar de projectos nacionais nos mais variados géneros e subgéneros. Mais ainda, as bandas constituem as suas próprias editoras e eventos, como há já muito se faz lá fora – não sendo um inédito nacional, certo é que o fenómeno tem vindo a crescer. Uma dessas bandas são os Then They Flew, quinteto nacional (e lisboeta) de post-rock, que lançou, no ano transacto, o seu primeiro álbum, Stable as the Earth Stops Spinning.

O post-rock é um género musical que tem o seu melindre: quando devidamente praticado, é um portento que eleva a mente através do ouvido; quando mal feito, é uma chatice pegada, uma repetição peganhenta quando não azeiteira. Felizmente que a maioria dos projectos nacionais (como os la flag, Catacombe ou JUSEPH) tem a lição bem estudada e, como sucede com os Then They Flew, até constam em listagens estrangeiras do género – o seu trabalho de estreia marca presença na lista pessoal de 2015. Não sendo a primeira vez a que assistimos a uma actuação da banda, houve mudanças na formação e, como é óbvio, o entrosamento da prática do material de estúdio ao vivo confere outra genica à banda.

O Stairway Club (ex-Lotus Club), em Cascais, foi o local desta primeira edição do Post Iberia Fest, iniciativa dos Then They Flew. Pelo meio do tugúrio e desterro intelectual (e não só) que Cascais é nos dias que correm, esta noite de post-rock foi um farol de interesse no meio de uma vila que vive de aparências, de um centro deprimente e descaracterizado e dos carros de alta cilindrada de gente (?) falida estacionados em cima de passeios e passadeiras para peões – uma Khe Sanh intelectual para qualquer pessoa com noção, portanto. Mais de um quarto de século a residir na zona leva-nos a esta conclusão. No meio da arrogância dos indigentes cascalenses, ali se fez um pouco de história. E música, fez-se? Continuem a ler.

Os anfitriões deram início à noite, carregando sobre o seu álbum de estreia. Quem também se estreou foi a nova baterista da banda, Isabela Nóbrega, que se juntou assim a Bernardo Sampaio, Gonçalo Paiva, Marcos Janela e Ricardo Almeida. “Estreia” foi, pois, o vocábulo da noite.

Se já em disco o material é do mais interessante post-rock que se pode ouvir por aí, ao vivo as coisas têm crescido a olh- , ouvidos vistos. O rendilhado crescente de Rooftop tem outro pulmão ao vivo, com um trabalho de guitarras e de secção de ritmo a ultrapassar os ares do estúdio e a confirmar que outros (leia-se maiores) palcos são merecedores destas canções. Tudo é agora (ainda) mais coeso, sinal de prática e de confiança – rampa de lançamento para voos mais altos (piada intencional).

O chavão de que a qualidade de uma banda também depende das suas inspirações é aqui verdadeiro; a banda bebe claramente dos Explosions in the Sky em termos de melodia, dos Pelican e dos And So I Watch You From Afar quando sente o pedal dos riffs e dos Godspeed You! Black Emperor nalguns arranjos, como o quarteto de cordas em An Enemy Will Bring Us Together. A Selecção ganhar o Europeu foi coisa digna de ser vista mas, em vez do cântico do Éder, esperemos que algum dia haja oportunidade para ver todo o aparato daquela canção ao vivo.

A versão a que tivemos direito em Cascais foi um belo exemplo de post-rock de bom gosto: a nova baterista estabelecendo vigorosamente o ritmo, numa toada que, quando associada à entrada em cena das guitarras, muito lembrou o início de All Tomorrow’s Parties (música de qualidade emulando música de qualidade); por seu turno, estas fizeram o resto e fizeram a ponte entre a calmaria e a tormenta da armadilha da quebra e a violência do final. A versão de estúdio parece algo já muito distante – assim coisa do tempo em que as pedaleiras eram mais pequenas e os cabelos e os horizontes musicais mais curtos.

Uma pequena polémica para terminar um concerto extremamente bem conseguido: se An Enemy Will Bring Us Together ou Owls levam a taça de melhor canção da banda– continuamos indecisos, dada a execução de ambas ao vivo. Especula-se aqui que, com aquele sample de Twin Peaks, a percussão truculenta e os vagalhões levantados pelos riffs, Owls é uma homenagem ao Gigante, personagem daquela série. De notar que o vídeo desta foi realizado por Ricardo Almeida.

Com esta fúria terminaram os Then They Flew a sua actuação, deixando a percepção de que estão em contínuo crescimento e que deverão continuar a explorar a variedade sónica que caracteriza a sua música – variedade dentro do género, sem esquecer o bom e velho Ebow.

Por volta da meia-noite, o evento tornou-se verdadeiramente ibérico, com o começo do concerto dos espanhóis Le Temps Du Loup. Segundo os próprios, os madrilenos fizeram-se à estrada à saída do trabalho e vieram mostrar o seu post-rock musculado, ao fim de mais de seiscentos quilómetros.

Estivemos em presença de um power trio de sonoridade marcial e mais rígida do que até então se tinha ouvido. Talvez por inspiração do filme homónimo de Michael Haneke, os Le Temps Du Loup reflectem a violência e a instabilidade da história de desespero da película; riffaria vigorosa e grave, a resvalar para o post-metal.

Uma inspiração óbvia – até pelo facto de serem um trio – são os Russian Circles. Tal é evidente em canções como Nourmandie, do EP homónimo de 2013. O prato chinês da bateria foi (salvo seja) prato forte da delimitação do som dos Le Temps Du Loup, o dobrar dos sinos da (como diz a descrição da banda na sua página do Bandcamp) intensidade, do horror e da barbárie – ou não fosse o vocalista e guitarrista chamar-se Hannibal.

Canções como Leo Voland (de Jauría, de 2014) são apanágio da influência dos Russian Circles, quiçá com um baixo que contribui mais do que o original para o conjunto. Se os Then They Flew tiveram variedade, os Le Temps Du Loup tiveram o peso do pedal duplo. Assim se continuou pelos caminhos de Guernica (apropriada à descrição da banda, de facto) e Iranian.

Foram 45 minutos de músculo tonal amplificado, de crueza e de libertação do enfado da estrada – tudo com uma pitada de entusiasmo pelo novo palco estrangeiro.

Por fim, os This Thing Called Life, quarteto também madrileno, mas que se move nos terrenos do post-hardcore. Contudo, com o que se viu e ouviu em palco temos alguma dificuldade em ver onde está o hardcore – que para nós equivale a Minor Threat e Bad Brains e não a subprodutos com grunhidos oriundos do metalcore. Assim, post-hardcore são, para nós, os Fugazi , os Jesus Lizard e os Big Black, por exemplo.

A atitude do vocalista, Guillermo Ferrer, é a de um Colin H. Van Eeckhout: berrando de costas para o público, mas no meio deste, com a banda a desfiar um post-metal e adjacentes que se aproxima, a espaços, dos Full of Hell. A diferença para estes fica-se pelo ritmo e agressividade menos frenéticos. O resto da banda fez de música de fundo para os lamentos de Ferrer – que se contorcia no chão – e o público tornou-se num conjunto de voyeurs.

Sem a voz, os This Thing Called Life andam por um post-rock mais limitado (faltou o Ebow dos antecessores!!), sem a identidade dos Then They Flew e dos Le Temps Du Loup.

E quando faltavam quinze minutos para as duas da manhã fez-se silêncio. Cá esperamos pela edição do ano que vem, com a certeza de que o valor acrescentado foi criado e que, com o tempo, quem sabe se Portugal não passará a ser uma pátria do post-rock, quer em bandas, quer em eventos. Massa crítica para fazer acontecer não falta.


sobre o autor

José V. Raposo

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