Reportagem


Ana Lua Caiano, Blonde Redhead, Militarie Gun, Amyl and the Sniffers, SZA

O primeiro dia do Primavera Sound Porto de 2024 foi de confronto entre revelações e veteranos, com vitória para todos.

Parque da Cidade

06/06/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Início de Junho é sempre aquele clássico: Verão ao virar da esquina, proximidade de feriados e, para melómanos de certo tipo, de época de Primavera Sound Porto. A edição deste ano contou com um cartaz mais enxuto mas com interesse à mesma, não obstante o fim da presença dos Shellac como banda residente do festival, dada a partida do grande mestre Steve Albini, bem como de alguns cancelamentos.

Perante os alertas laranja de dilúvio e trovoada, a falta de Shellac e da Casa Guedes e de cancelamentos antecipados e de última hora, esta edição seria, no mínimo, desafiante – no bom e no mau sentido. Arrancando na quinta-feira, dia 6 de Junho, o primeiro dia desenrolou-se aprimoradamente logo a partir do fim da tarde.

 

Ana Lua Caiano – Palco Super Bock

O certame para nós começou com Ana Lua Caiano, cantautora exploratória portuguesa que este ano lançou o seu álbum de estreia (depois de dois EP já bastante reveladores de algo para lá de meros indícios de qualidade), o belíssimo Vou Ficar Neste Quadrado, merecedor com inteira justiça de muita atenção nacional e internacional. Faltava, porém, a prova dos nove da actuação ao vivo.

Ao descer-se a colina que dava acesso ao Palco Super Bock (que, tal como o actual Palco Vodafone, é dos que ainda mantém a localização original) já batia forte no peito a percussão de Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou. Montra da mistura neo-folk de Caiano, onde Variações, cantos tradicionais populares e coisas como tUnE-yArDs convivem, levantou uns passos de dança dos indígenas e uns olhares arregalados do contingente estrangeiro que foi sempre parte do ADN do Primavera Sound Porto. Mas ninguém andando às voltas fugindo e recuando.

Em O Bicho Anda Por Aí, o bicho bem podia ser Ana Lua Caiano. Versão mais crua do que a de estúdio, nem por isso lhe foi inferior, bem pelo contrário. O ritmo e a valentia com que interpreta o seu material dão já este concerto como aposta ganha; com sequenciadores, um bombo, um adufe e uma voz portentosa atira-nos para as cordas, malhando forte e feio na gente.

Na senda de nomes como Conan Osiris e Pedro Mafama (ainda que num plano mais abstracto e experimental do que estes), Ana Lua Caiano tem já uma identidade e poderio sustentados pela qualidade em estúdio e em palco.

De mãos à cintura e palha aos pés da mesa, só lhe faltou Leitão de Barros a filmar-lhe o concerto. Numa brilhante execução de Mão na Mão (cuja letra até remete para a diatribe de Paulo Bento) terminou aquele que foi mais do que um concerto – foi uma confirmação. Uma mão-cheia de agradecimentos e votos de divertimento para mais dois dias e assim se foi de palco.

Ana Lua Caiano até pode cantar que ficará num quadrado, mas está bem é fora da caixa.

 

PRIMAVERA SOUND PORTO 2024
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Blonde Redhead – Palco Super Bock

Não foi preciso sair do mesmo sítio para reencontrar uma referência dos anos zero como os Blonde Redhead. O trio nova-iorquino composto por uma japonesa e dois irmãos italianos era banda de “elite” de loja de discos e de fora da Internet há duas décadas (muitas vezes mais pelo elemento “exótico” de Kazu Makino do que pela variedade sónica da banda, infelizmente) e continua aí para as curvas e com um Sit Down for Dinner (2023) para apresentar.

O desdém por grilhetas é uma forçaa de Blonde Redhead. E se há desdém por limitações estilísticas também há respeito pela própria história que, numa banda com trinta e um anos de existência, há em barda. E um arranque com Falling Man (de Misery Is a Butterfly, de 2004) espelha ambas as dimensões.

De um passeio pelo passado digno de registo para um regresso ao presente com Melody Experiment e Snowman, cruzamentos entre trip hop e post-rock que em muitas bandas redundariam num desastre de azeiteplanagem, mas que os Blonde Redhead conseguem concretizar com toda a propriedade. Por seu turno, Dr. Strangeluv é um piscar de olho aos Steely Dan, mercê das suas progressões de acordes, com zero ferrugem acumulada.

Dadas as malditas sobreposições de horários, tivemos de abandonar o concerto de Blonde Redhead e fizemo-lo com pena. Do que lhes vimos, instrumentalmente esteve tudo no sítio, com a voz de Makino a precisar de alguma afinação, mas com o timbre que é a sua marca registada presente. Não lhes punhamos a vista em cima desde Paredes de Coura em 2011, e oxalá os reencontremos com mais tempo, que bem merecem.

 

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Militarie Gun – Palco Porto

Marcha de uma ponta à outra do recinto para testemunhar e registar a actuação de Militarie Gun, banda californiana que nem meia década tem mas que se comporta como se andasse nisto há vinte anos. E se parte da culpa oriunda deste facto é do som híbrido punk e post-hardcore da banda, a outra parte da culpa é do vocalista, Ian Shelton, que mal chegámos ao palco Porto entregava-se, juntamente com o resto da banda, a uma interpretação soberba de Pressure Cooker, single editado a meias com os Dazy.

Equipado com uma réplica (?) de colete balístico com as iniciais da banda, é mensageiro de um dualismo ubíquo na punkalhada: som pesado, comunicação democrática e de mensagem positiva. Declara a plateia como sua amiga e que o inimigo contra o qual o concerto-combate investiria seria a depressão – não sem antes de endereçar um pedido de desculpa aos pobres fãs de SZA que teriam de aturar a maluqueira do mosh pit e do crowd surf.

O aludido som híbrido de Militarie Gun reflecte-se em canções como Will Logic; longe da velocidade típica do punk e do hardcore, mas um portento emocional à Rites of Spring. E, no tocante a emoções, esta é uma banda que lida com elas a frio – não há complexidade da mente nem dor de alma que não se case com os riffs de um ataque duplo de guitarras. Provas de força? Thought You Were Waving ou Never Fucked Up Once.

Esta é uma banda cujos elementos têm familiares com problemas graves com o álcool e a cumprir pena de prisão efectiva, pelo que o que está vertido nas canções tem autenticidade, não é simplesmente um tipo qualquer com tatuagens na cara a dizer-se vítima da Ritalina e do Xanax – ou não dissesse Shelton a dada altura que faz “música fodida” porque é “fodido da cabeça”. Mas, mesmo no meio das tragédias pessoais, há espaço para o humor: “só vejo gente feliz [fãs de Militarie Gun] a malhar em malta triste [fãs mochileiros de SZA]!”

Para além da música do grupo houve tempo para canções de outrem. Numa sessão de perguntas e respostas (começavam a bater as saudades de Shellac) com apenas uma pergunta de escolha múltipla, Shelton pergunta-nos se queremos ouvir a “canção número um” ou a “canção número 2 [“song two”]”; a escolha do público recaiu na segunda, que era mesmo uma versão (ainda mais trauliteira do que a original) de Song 2 dos Blur, que ainda há um ano foram donos daquele palco.

Depois dos PUP na edição de 2023, os Militarie Gun preencheram com distinção a quota de banda-punk-com-algo-mais do cartaz. Fecho de concerto apropriado com Do It Faster, cuja letra contém versos sobre perder tempo, algo que não aconteceu a quem viu os californianos. Viveu-se (e bem) à lei da bala.

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Amyl and the Sniffers – Palco Vodafone

Que a Austrália continua a ser referência na música popular não é novidade nenhuma. Ainda que os australianos estejam nos nossos antípodas geográficos, estão em consonância sónica connosco, seja com Courtney Barnett ou com os Tropical Fuck Storm (mais sobre eles nos próximos textos), entre outros.

Quando nos lembramos de Rose Tattoo ou de AC/DC dos tempos do saudoso Bon Scott (bem sabemos que nasceu na Escócia), os herdeiros dilectos de ambos são bandas como os Amyl and the Sniffers, grupo de Melbourne encabeçado por uma tempestade de movimento e de decibéis chamada Amy Taylor. Misto encarnacional de Wendy O. Williams (sem a perseguição a menores ou a pantomina imbecil), Bon Scott ou de Joan Jett, ela é que co-comanda as operações – o co-comandante é a riffalhada potente de Declan Martens.

Com efeito, parece que estamos numa cápsula do tempo e a banda poderia estar ensanduichada entre os Rose Tattoo e os The Saints num festival em 1980 ou coisa que o valha, quer pelos riffs, quer pelos mullets da banda (ou de um baixista em tronco nu, acabado de chegar de um jogo de futebol australiano, com porrada em campo e na bancada), claramente campeã do drip por onde passeie a sua categoria. Amy Taylor, em trajes menores que contrastam com o poder do berreiro roufenho da sua voz, rebola pelo palco, vem entrosar-se com o público e é a ponta-de-lança de malhas de punk’n’roll sobre corações com dúvidas e receios (No More Tears), porteiros de bar que não deixam uma pessoa divertir-se (Security) e algo tão normal quanto uma mulher querer andar em segurança na rua à noite (Knifey), porque até o roque precisa de alguma paz de espírito.

São uma banda revolucionária? Nem por isso. Mas recordam-nos, em todas as canções, que o volume de som e a agressividade das canções chegam e sobram para dar um concerto de nomeada e inserir os Amyl and the Sniffers na categoria de bandas a mostrar a chorões que passam a vida a carpir sobre já não haver bom rock neste mundo. Manquem-se, rafeiros.

 

PRIMAVERA SOUND PORTO 2024
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Tecnicamente, estava-se já no período da noite, que traria um nome (muito) grande do cartaz: PJ Harvey. Dada a magnitude do concerto, voltámos até ao Palco Porto para o que viria a ser um concerto digno de memória – de tal maneira que terá direito a um texto próprio. E como Primavera que é Primavera tem de ter concertos sobrepostos, perdemos Eartheater.

 

SZA – Palco Porto

Num palco mal-amado mas que contava com mochileiros mal o recinto abriu as suas portas, era chegada a hora da primeira enchente “à antiga” do Primavera Sound Porto de 2024, a do concerto de SZA. A produtora norte-americana assenta que nem uma luva na toada programática do “novo normal” do festival, isto é, de trazer nomes que ainda que sejam já de nomeada muito além da música alternativa (do mainstream, se se preferir), têm na sua identidade artística e na sua obra algo que ainda assim as distingue de fenómenos de vendas como Taylor Swift ou Beyoncé.

Tendo no passaporte o nome de Solána Imani Rowe, SZA difere daquela (e é bem mais do que uma Beyoncé dos pobres) e é inteiramente distinta das demais; não se faz um discaço como SOS (tão bom que saiu em 2022 mas figurou em muitas listas de melhores discos de 2023) para se ficar num patamar de banalidade. A cenografia de palco a dada altura indicou que estávamos num cais – e o barco de SZA ia de saída, adeus ó cais do Primavera.

Seja com Seek & Destroy a abrir ou com a breve homenagem a Ol’ Dirty Bastard em Forgiveless, SZA tem o público sequioso na mão, agarrando-o com a qualidade do material que vai desfilando e combinando com a extravagância visual de um palco que se vai metamorfoseando consoante a canção – e que é utilizado por Rowe como instrumento, sentada nele em exercício de pretensa intimidade com a plateia ou numa coreografia mais arrojada.

No que respeita ao R&B propriamente dito, este afasta-se da Escola Beyoncé de Intersecção Sonora (como esta fez recentemente com a country ou anteriormente com a house) e de barroquismos azeiteiros, focando-se em samples e em instrumentação à medida da sua inspiração (a própria banda de SZA deu de si várias vezes, sobretudo a guitarrista), como foi o caso de uma bem conseguida Saturn, com um pulo ao pop punk (leram bem) em F2F e à pop swiftista de Nobody Gets Me (ainda que com uma letra para maiores de dezoito anos, em certos versos).

Artista que é artista sabe que um dado momento tanto pode salvar um concerto ou torná-lo ainda mais digno de memória. No caso de SZA, deixou para uma subida a uma bola de demolição em Low esse momento marcante, tratando-se claramente do segundo caso, já que o concerto estava ganho quase desde o início.

Por obrigações de horário, não foi possível ver SZA até ao fim, mas que fique em acta que foi um repasto com tudo a que se tem direito na R&B contemporânea, com uns toques de exploração que só justificam a presença num festival como o Primavera Sound.

(Por imposição da artista, não há fotografias da sua actuação)

 

O dia já ia longo e, numa edição sem palco Bits, o horário puxava mais para o pedal do que para outra coisa, mas um nome “à Primavera” esperava por nós no Palco Plenitude, os American Football. Nome muito ansiado que deu um concerto que merece texto próprio. E com isto se fechou o primeiro dia do Primavera Sound Porto de 2024.


sobre o autor

José V. Raposo

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