Reportagem


Crumb, This Is The Kit, Lambchop, Wolf Eyes

O segundo dia do Primavera Sound Porto 2024 foi de prazerosas disparidades sónicas, do psicadelismo ao noise.

Parque da Cidade do Porto

07/06/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Primavera Sound que é Primavera Sound tem de ter bronca com a meteorologia, não há volta a dar. A entidade nacional da área a dar alertas laranja (o segundo grau mais gravoso da escala, convém recordar) de chuva diluviana e de trovoada bíblica para as zonas do Porto e de Matosinhos, todo um festim catastrófico à espreita – e para fazer face à coisa um dispositivo pessoal de dois impermeáveis, Doc Martens nos pés e um plano operacional a contar com tempo mais apropriado para Janeiro do que para Junho. E todo um choro nas redes sociais do festival a pedir suspensões, cancelamentos e tendas para abrigar cinquenta mil pessoas.

Pois bem, a montanha nem um rato pariu, ficou-se pela formiga. Houve trovoada? Houve, mas em Matosinhos. Houve céu farrusco? Houve, mas os Deuses pouco ou nada nos mijaram em cima. Houve despedimentos no IPMA por ridículo excesso de zelo nas previsões, que por sua vez provocou um quase pânico? Não houve, mas devia ter havido (da nossa parte, deixou de ser a fonte primária em matéria de informação meteorológica).

Mau tempo só mesmo no Palco Vodafone, que teve toda a sua actividade suspensa por conta do peso excessivo do equipamento de Justice, que provocou um abatimento da estrutura. Erro de cálculo aquando da concepção da obra? Ou na execução da obra? Ou da montagem do palco? Não caíram as Waters of Nazareth mas houve Stress à mesma, infelizmente.

E música lá no Parque da Cidade, houve? Houve, pois. E com resultados surpreendentes, diga-se com indisfarçável regozijo.

 

Crumb – Palco Porto

O grupo de Lila Ramani e companhia, dado ter sido colocado no Palco Porto, tinha a missão difícil de entreter as massas que vieram ao Parque da Cidade com um e só um objectivo: prestar vassalagem e devoção a Lana Del Rey. Não sabemos se a horda de lanistas gostou ou não, mas da nossa parte o balanço do concerto da banda de Boston é positivo.

Pontuais a abrir as hostilidades e indo directos ao assunto com a canção homónima de Amama, disco editado este ano (e dedicado à avó de Ramani), os Crumb revelaram-se um competente cruzamento entre o psicadelismo de MADMADMAD e o virtuosismo do jazz de fusão de BADBADNOTGOOD. A banda está solta e confiante, os acordes fluem e tal não é alheio ao facto de este ser o último concerto da digressão, com a máquina vigorosamente oleada.

No meio do enfado de alguns mochileiros devotos de Lana Del Rey, o chamamento à dança de Balloon não caiu em saco roto e detectou-se movimento à nossa volta. Quando é que os Crumb se revelam como mais do que uns psicadelistas? Quando extravasam o âmbito de estúdio, como numa Side By Side sensacional, que mais do que justifica a nossa presença ali. E que justifica um regresso da banda noutras condições.

 

PRIMAVERA SOUND PORTO 2024
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Depois desta introdução ao segundo dia, começava o público que não era fanático de Lana Del Rey a trotar pelo recinto. No nosso caso, em direcção à vizinhança de palco para assistir a This Is The Kit.

 

This Is The Kit – Palco Plenitude

O palco denominado “Plenitude” (mercê de um patrocinador, mal necessário numa empreitada desta dimensão) tem uma designação apropriada a This Is The Kit, projecto da britânica Kate Stables. Totalmente à vontade (descalça e parecendo que tinha vindo de uma acção de limpeza do recinto), esta exclamou que com o tempo nublado o Primavera Sound Porto mais parecia um festival britânico e sem mais delongas e acompanhada de uma banda que conta com gente como Rozi Plain (baixo) e Neil Smith (guitarra), marca o primeiro cesto de uma partida em forma de concerto altamente conseguida através de Moonshine Freeze.

Stables tem o dom de sacar acordes que convidam a ficar para ver o que sai dali, com um corolário folk rock simultaneamente descontraído e tenso (!), mas de excelência, vide para tal Inside Outside. Como uma Sharon Van Etten menos propensa à melodia e mais à introspecção, nem por isso a sua obra pende para o negrume mental, antes para um solarengo filme de vida como em grandes composições como This is What You Did (Stables de banjo à cintura numa homenagem subtil a Steve Albini) ou No Such Thing, canção que nos tornou fãs do projecto, uma lufada de optimismo em tempos pandémicos, parte integrante de um dos melhores discos de 2020, Off Off On.

Rozi Plain e Neil Smith, cujo contributo ecoou pela planície da zona, providenciaram a textura necessária para distinguir o concerto de This Is The Kit dos demais, que sorrateiramente se tornou num dos melhores desta edição.

A simplicidade é uma arma.

 

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Se o tempo estava instável, o dia de concertos seguia agradável. Em dia de bons repastos motivados por aniversário de amigos, impunha-se pausa logística para bifana da Conga, proteína obrigatória para dar à perna pelo recinto. Ressalve-se o preço proibitivo da cerveja para o público em geral, aspecto a rever urgentemente, que obstáculos destes também custam a tolerar.

 

Lambchop – Palco Super Bock

Enquanto os filhos se amontoavam no palco Porto à espera de Lana Del Rey, os pais fizeram do recinto uma zona-tampão e acorreram ao outro lado do mesmo para ver Lambchop em formato lounge, com Kurt Wagner acompanhado por Andrew Broder dos Fog ao piano, bem longe dos tempos da “banda country mais marada de Nashville”. Anunciada como “performance intimista ao piano”, foi exactamente isso que se viu no palco Super Bock – pelo som e pelo ambiente.

Alguns receios nossos com o comportamento do público não se confirmaram, não havendo assim adultos a comportarem-se como crianças e podendo o duo avançar com His Song Is Sung, retirada the The Bible (2022), o mais recente álbum da instituição Lambchop (sim, merecem esse estatuto). Diga-se que, mesmo com um público respeitoso e ciente, esta opção era arriscada, mas Wagner nada temeu, cantando, circulando, gesticulando e fumando umas cigarradas, apenas recorrendo a copos de água numa mesa recuada no palco, que também serviu para lhe descansar os ossos e fazê-lo reflectir sobre tudo e mais alguma coisa.

Depois do auto-tune (que Kurt Wagner foi das pouquíssimas pessoas na galáxia a usar com gosto), agora é tempo de um registo mais expressivo, como que a querer competir com a melodia saída do piano. Isto sem deixar o humor e as subtilezas de lado que, em Give It, Wagner não se esqueceu de voltar a enfiar uma singular versão de Once in a Lifetime dos Talking Heads – o despojo fez esquecer a grandiloquência instrumental de outras versões. Por seu turno, as subtilezas de Broder nos interlúdios eram um aceno a Anton Webern.

Se o público menos afoito abandonou o palco ou desatou aos cochichos (afinal não são só os putos que têm fraco foco de atenção), Wagner e Broder foram percorrendo o alinhamento, com o apogeu a dar-se em Up With People. Kurt Wagner transformou-se num Luís Paixão Martins a dissertar sobre Richard Milhous Nixon, prelecção que lhe agradecemos com a devida vénia.

 

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Se a tão propalada tempestade não se concretizava, duas outras confirmavam-se: o cancelamento (ou, no caso de The Legendary Tigerman, do adiamento para o dia seguinte) de todos os concertos no palco Vodafone devido ao abatimento da estrutura com o peso excessivo do equipamento de Justice (levando às indagações supra) e a tormenta que foi o concerto dos Tropical Fuck Storm, que fizeram jus ao seu nome, passe o lugar-comum. E este concerto terá direito a texto próprio, meritocracia oblige.

 

Wolf Eyes – Palco Super Bock

Os maiorais do noise, os sultões da fixeza, os líderes supremos das mêmes da cena Wolf Eyes deram as duas voltas à chave deste segundo dia de Primavera Sound Porto. Tal como da última vez que os tínhamos visto ou, melhor dizendo, como é da lavra da dupla de Detroit, um concerto de Wolf Eyes é uma cerimónia a várias dimensões e andamentos.

Celebra-se o noise, que é obviamente vida, a mística do universo do grupo (incluindo as melhores mêmes desta vida, como quem exibe um tote bag de Blood Incantation em celebração da eucaristia memística) e as atitudes de um corpo de fãs que tanto é fidelíssimo e sabe ao que vai, como quem anda meio perdido pelo recinto e se depara com uma jarda para ficar azamboado sensorialmente. Da abstracção meio ambient até ao harsh noise vai um quarto de hora, se tanto.

A plateia em Wolf Eyes é a verdadeira zona VIP do Primavera Sound Porto. Pessoas que usam óculos escuros à noite (porque quando se é fixe o Sol está sempre a brilhar, já dizia o outro), pessoas com tote bags, t-shirts e chapéus de editoras e bandas obscuras, essas condecorações dos duros (de ouvido) e pessoas que assistem ao concerto deitadas no chão, quiçá a tentar sentir as vibrações do PA no chão, qual terapia holística do noise. Nate Young, um dos membros da banda, exclama o que é perceptível a todos: “THIS IS THE COOL CREW!”. Ámen.

E a malta fixe claro que fica em brasa quando John Olson ergue o punho como que num “a luta pela dureza continua” e saca das suas flautas electrónicas para tornar a coisa ainda mais abrasiva e estranha, como se quer. Não há como não aplaudir a coragem em ir buscar os Wolf Eyes para o cartaz deste ano quando se ouve (ou enfrenta) Psychoplasmic Plunger ou Most Attic.

Grão a grão encheu-se o papo de noise com satisfação. Devidamente saciados com a liturgia do underground, renovámos as honras de Estado que lhes demos em Novembro do ano passado e saudámos o duo de Detroit.

 

PRIMAVERA SOUND PORTO 2024
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Com tudo isto ficámos com 95% do dia fechado. Restava então um breve périplo até ao palco principal, onde Lana Del Rey, persona/nome artístico/personagem (riscar o que não interessa) da norte-americana Elizabeth Woolridge Grant maravilhava quem esgotou o festival neste dia. Cenografia e presença de palco a preceito, tudo parecia correr bem à diva que oscila entre o mundo cor-de-rosa de Hollywood e os interstícios de sangue e morte de Elizabeth Short ou Sharon Tate (a obra de Del Rey pode muito bem personificar as dimensões de Tate – vida idílica de actriz e morte horrenda) ou ainda as obsessões amorosas de um Arturo Bandini desta vida.

Reconhecemos-lhe um talento imenso (muitas vezes abafado por preconceitos), mas demasiadas pessoas (e os horários, que impediram uma ida atempada para ver o concerto em condições) naquela plateia e certa histeria impediram que se prestasse mais atenção à actuação. Quis o destino, contudo, que se chegasse exactamente antes de uma interpretação e pêras de uma canção admirável como Video Games, o seu single de estreia, no qual se ouve e vê (que o videoclip também é dela) toda a sua ambição. Teatral e reluzente, conquistou quem esperou horas (incluindo confusão à mistura na entrada para o recinto) para venerar Sua Excelência e, crê-se, quem só ali deu uma perninha.

Mesmo sem tempestade daquela que molha, pode dizer-se que o segundo dia do Primavera Sound Porto foi abençoado. Faltava assim o terceiro e último dia.

 

PRIMAVERA SOUND PORTO 2024
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sobre o autor

José V. Raposo

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