Reportagem


Protomartyr

O escárnio dos Protomartyr é o nosso prazer.

Praia Fluvial do Taboão

15/08/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Há bandas que, grão a grão, vão enchendo o seu papo (e a nossa alma) com discos memoráveis e uma reputação ao vivo temível. Que fazem do escárnio, do sarcasmo e do pessimismo armas artísticas capazes de nos deixar a todos de rastos, ainda que paradoxalmente com um sorriso na cara. Os Protomartyr são uma dessas bandas.

Vêm de Detroit, cidade distópica cujo contexto político-administrativo nas últimas décadas é, como escrevemos quando os vimos em 2018, “uma comédia de erros e de maldades” ou, vendo-se as coisas de outro ângulo, terreno fértil para música de qualidade. O post-punk, veículo sónico escolhido pelo grupo, é um meio privilegiado para a criação de invectivas em forma de canções, com o pessimismo, o desespero e o humor negro como bandeiras.

O arranque com Maidenhead e o seguimento com For Tomorrow são exaltações melódicas que de certa maneira até destoam do resto da obra do grupo, não obstante serem de álbuns com quase uma década de distância entre si – as melodias substituem o sprechgesang típico da interpretação de Joe Casey, esse vocalista singularíssimo.

Casey é um dos vocalistas com mais jogo da música popular actual. De blazer, cigarro ao canto da boca e de bolsos cheios de latas de cerveja (que vai saboreando, muitas vezes com expressão a puxar para o filosófica), olha para nós como alguém que já viu tudo e que não ficaria minimamente surpreendido se tivéssemos todos oito olhos, seis narizes e quatro bocas. É um catedrático da bílis e da invectiva, um poeta do grotesco; o seu punho erguido não é de luta, é de carregar os estandartes invisíveis do sarcasmo e do desespero, deixados sem dono quais res nullius após a morte de Mark E. Smith. Eis um dos melhores letristas vivos que para aí andam.

 

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

 

Poderíamos encher este texto de citações da genialidade de Casey, mas bastará referir que qualquer gajo que escreva uma letra (neste caso, Half Sister) em que Jesus Cristo é comparado a um radicalzeco de meia-tigela armado em karen e Pôncio Pilatos a um gerente que tem de lidar com chatos tirados a papel químico uns dos outros ou bebeu demasiado ou leu demasiadas vezes Morte a Crédito de Céline. Para os Protomartyr, a vida tornou-se numa grande anedota amoral, onde somos todos caricaturas e rémoras uns dos outros, alimentando-nos da boa fé alheia e tudo vendendo se isso nos der jeito, com a alma a ser o activo mais apetecível.

Dizendo em nome da banda que estava contente por estar de volta a terras lusas e lamentando o tempo de espera por este regresso, Casey lançou que iríamos voltar a esperar bastante tempo por um novo concerto de Protomartyr por cá (ó diabo), convidando, ainda, quem tivesse tomates no bolso a atirá-los à banda caso não estivesse a gostar do concerto. Estoicismo à moda de Joe Casey, que encarna Marco Aurélio e anuncia as suas próprias Meditações.

Todavia, Casey não está sozinho em palco. Duas guitarras dão um peso e uma gravitas ao concerto que não se ouve em estúdio (Greg Ahee é um digno herdeiro da abrasão da saudosa Larissa Strickland dos Laughing Hyenas, outra bandazorra do Michigan) e os polirritmos de Alex Leonard colocam o material dos Protomartyr para lá de um Rubicão sónico, muito além de muita mediocridade formulaica que passa por “post-punk” (não merecem perder as aspas). Um blazer meio puído vale mais do que todo o cosplay gótico a armar ao pingarelho.

Num concerto que já tinha deixado a concorrência (que deu luta) do dia a milhas, uma sequência filhadameretriz de My Children e Pontiac 87 (ambas candidatas a melhor canção da banda) cimentou a liderança do (agora) quinteto. Um prazer gigantesco assistir ao desprezo pelo próprio sangue do protagonista de My Children, um monumento litúrgico de acordes ora lúgubres, ora exaltantes que provocam pele de galinha e à falta de tréguas do pessimismo e da misantropia de Pontiac 87, o relato do embate entre o pior da natureza humana e da selvajaria do capitalismo a que nem a visita do Papa João Paulo II a Detroit resistiu. O sangue de Cristo são cifrões e porrada à porta da sessão ecuménica e esta uma malha e tanto que os Interpol teriam vendido as avós só para a terem escrito. Faltou alguma coisa? Claro que sim: Don’t Go To Anacita e Windsor Hum, por exemplo. Duas canções devastadoras para reforçar a medalha de ouro dos Protomartyr.

“Esta é a nossa última música e amamo-vos tanto quanto podemos” (já não é mau, bem melhor do que o pai desnaturado de Scum, Rise!), anunciou Casey antes de uma venenosa Why Does It Shake?. Uma facada nas ilusões e uma ode ao declínio físico que nos espera a todos (as caveiras da Capela dos Ossos bem dizem que pelos nossos ossos aguardam) para mandar toda a gente para fora dali simultaneamente de rastos e com um sorriso nas trombas.

Não é existencialismo de sarjeta. É, outrossim, o esgoto da existência. De vidas à venda como a de Hanio Yamada no Vida à Venda de Mishima, um mundo pejado de personagens horrendas e que vivem de segundas intenções. O declínio civilizacional é real, antecede a podridão dos pilares do betão e, afinal de contas, o tal meteorito da misericórdia até é capaz de dar jeito. Mas depois acaba o concerto e voltamos a uma semi-normalidade, felizes e contentes com o escárnio que acabámos de ver a ser artisticamente cuspido.

Não vão a Anacita, vão antes a Coura.

 

 

 

 

 

 

 


sobre o autor

José V. Raposo

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