Reportagem


Pulp

Um concerto que foi mesmo um encore e no qual se cumpriu a promessa dos Pulp de que esta seria uma noite para recordar.

Parque da Cidade do Porto

08/06/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Era uma vez um puto da Primária que não podia ver nem os Pulp nem o Jarvis Cocker pintados. Que não os suportava nem com molho de tomate. Que os achava uns tipos esquisitos e tarados (isto para quem era fã de palmo e meio dos guedelhudos do grunge e do metal e de coisas como Cypress Hill é obra), pretensiosos (foi assim que aprendeu o significado da palavra no dicionário, associando-a à pose da banda britânica), cujas canções eram meio foleiras (pois, para quem só queria saber de power chords de grunge) e que nunca na vida poderiam estar ao mesmo nível dos Blur e dos Oasis. No entanto, havia ali qualquer coisa aliciante que os transformava num prazer proibido, em algo que, ainda que não fosse como as facções condutoras da Britpop (da qual os Pulp se quiseram distanciar, diga-se) Albarn/Coxon e Gallagher ao quadrado, até que nem soava nada mal – mas que era um bocado inacessível porque pouco ou nada se percebia da temática das canções dos Pulp. E para se perceber teve de se viver.

Esse puto era este escriba. Antes de se prosseguir para o relato do concerto de Pulp no Primavera Sound Porto, convém também mencionar quando é que nos tornámos fãs da banda de Sheffield. Pois bem, depois do concerto a solo de Jarvis Cocker em Paredes de Coura em 2009 (do qual fugimos como o Diabo foge da cruz) e após conversas com adeptos ferrenhos deste e da banda que é a sua obra de vida, lá demos uma oportunidade e ouvimos com ouvidos de ouvir discos como His ’n’ Hers e Different Class. Ainda não muito convencidos, fomos ouvindo a banda aos poucos nos dois anos seguintes e eis que o festival à beira do Coura confirmou a banda na sua digressão de reunião de então.

Um concerto do caraças depois e fizemo-nos sócios do clube de fãs de Pulp, não havia volta a dar. Chegados a 2024, quase década e meia depois, havia que comemorar o regresso a Portugal nesta digressão de reunião, mas também que lamentar a ausência de Steve Mackey, baixista prematuramente desaparecido no ano passado, que a dada altura do concerto teve direito a uma homenagem conjunta com outro Steve, o Albini (sempre ele).

Uma espreitadela em telemóvel alheio aos treinos para o grande prémio do Canadá do que passa hoje por Fórmula Um e de repente os ecrãs do palco Vodafone (que ninguém diria que esteve interditado na noite anterior) enchem-se de mensagens em português, primeiro dando-nos as boas noites, depois dizendo-nos com toda a pompa que esta será uma noite para recordarmos e, ainda, a definição de “encore” (“um encore acontece quando a multidão quer mais”), com um pedido atrevido (só podia vir da banda de um gajo como Jarvis Cocker) para se fazer barulho, perdão, FAZER BARULHO, que isto é o que os Pulp fazem num encore.

E o que fazem de seguida é irem entrando um por um no escuro, até Cocker aparecer à frente de uma Lua projectada e todos se lançarem à ennui de I Spy, banda sonora de muitos kitchen sink dramas reais de noventas, com taradice à mistura, porque se trata dos Pulp – e nem sinal do Diácono Remédios. Deixamos o adultério para trás mas levamos o papel de parede connosco para um estoiro chamado Disco 2000, um dos tais prazeres proibidos de infância – para nós a malha e para o jovenzinho Cocker a inacessível Deborah que vivia na casa demasiado pequena.

Muita cor no palco (como na pista de dança do clip), muito salto e muito berreiro enquanto Cocker salta pelo palco e lidera a reminiscência-lamento. Ela casou-se (e já morreu, infelizmente), mas gostaremos sempre dela.

É com malhas como Something Changed que se percebe porque é que um puto que ainda está a aprender a ler e a escrever ou que acabou de passar para o quinto ano não gosta de Pulp: não é possível, naquela etapa da vida, perceber os ditames (incluindo aleatoriedades) do destino, sobretudo quando a mera ideia de amor provoca nojo e embaraço (e talvez um cancelamento na turma) e um projecto de vida ainda é mais fantasia abstracta do que realidade concreta.

E, bem assim, não é possível nessas idades perceber nem achar piada a alguém como Jarvis Cocker. Sedutor, gingão e sarcástico (e prestes a casar-se novamente, já que anunciou assim de surra que este seria o último concerto de Pulp com ele solteirão), tem o público na mão e o palco é o seu feudo, onde faz proclamações, sobe e desce plataformas como um crooner frenético, deita-se no palco como se este fosse um divã e todos nós uns psicanalistas em F.E.E.L.I.N.G.C.A.L.L.E.D.L.O.V.E., faz publicidade não solicitada a um dos vinhos disponíveis no festival e, claro, discorre sobre assuntos de vida, depressão, cama e coração nas canções da sua banda.

Ainda neste assunto, se em tempos os Rolling Stones e 90% das bandas se debruçavam sobre os engates e as “cambalhotas”, os Pulp são banda obcecada pelos efeitos e consequências dos engates. Podem ser muito gingões, mas por dentro estão roídos pelas que escaparam e por relações abaixo de cão, despejando essas frustrações numa incrível Do You Remember The First Time?.

Tratando-se de concerto em modo grandes êxitos, naturalmente que faltará sempre qualquer coisa, mas a lista de verificações é perto de inexcedível. O pau feito metafórico da editora a aviar cartucho na banda em This Is Hardcore? Confere. O voyeurismo de Babies, aqui multiplicado sonicamente por mil? Bota que tem.

Se os Pulp começaram o concerto na Lua, acabaram-no no sol incandescente de Sunrise; ao anticlímax da letra junta-se o de ser a última canção do tempo regulamentar deste encore com encore. O sol dos Pulp nasceu, ao contrário daquele que o produtor da malha (com Luís Jardim na equipa), o eterno Scott Walker, dizia com os “irmãos” Walker Brothers que não mais nasceria em The Sun Ain’t Gonna Shine (Anymore). Uma outro épica levou-nos a perguntar novamente porque raio não gostávamos disto quando saiu.

Muitos dos que nos rodeavam eram desse tempo e estavam a reviver alguns dos melhores tempos das suas vidas (de quando não tinham divórcios, empréstimos e pensões de alimentos para pagar e por aí fora, possivelmente), já outros talvez estivessem a fingir esse revivalismo – a mistura de idades dava gosto ver, contudo. E dá ainda mais gosto ver que, para além de Cocker, Candida Doyle, Nick Banks e Mark Webber (sem esquecer os músicos de digressão Andrew McKinney, Emma Smith e Adam Betts) não perderam nada desde a última vez que os vimos.

As esperanças de apanharmos com uma Razzmatazz (essa grande canção-manifesto contra uma ex) esfumaram-se quando Cocker faz simultaneamente a despedida através da apresentação de Common People, guerra de classes contra o cinismo dos ricos à moda da Britpop e onde todo o génio letrista daquele dá de si, porque se se vive numa bolha milionária dificilmente se faz ideia do que é viver uma vida sem sentido e na qual nada se controla. Uma canção incomum com um público com um comportamento igual, não havendo um pé no chão nem alguém calado no refrão. Uma cavalgada magistral, tal como em Coura.

O magricela de cara de grão-de-bico, de fato de veludo e de óculos à velhote e sua banda despediram-se de nós depois do recital que deram. Os Pulp eram os adultos na sala da Britpop e, a par dos Suede, eram daquela os maiores contadores de histórias de luxúria e de sarcasmo no meio da ressaca gigante de décadas de excessos que foram os anos noventa. Um concerto cuja euforia foi mesmo a de um encore com dezasseis canções – cujo público, segundo Cocker, deu 101% de resposta aos 100% de esforço da banda.

Encontrámo-nos todos no ano de 2024 e não foi nada estranho que fôssemos todos adultos. E o tal puto que não podia com Pulp? Ficou em 1995.

 

 

 

Pulp Setlist Primavera Sound Porto, This Is What We Do for an Encore 2023-2024


sobre o autor

José V. Raposo

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