Reportagem


Ryan Adams + Jesse Malin

Aula Magna

16/06/2011


Há dois aspectos de surpresa em relação à passagem de Ryan Adams por Portugal. Um prende-se com o teor do espectáculo apresentado. Depois de no ano passado ter editado “Orion”, álbum de metal que nunca pensaríamos ouvir, e III/IV com os The Cardinals, Ryan apresenta-se em formato acústico e solitário em palco. Por outro lado, é com algum espanto que depois de anunciar que iria fazer uma pausa do mundo da música em 2009 decida que a primeira tour de regresso à estrada haveria de ser no continente Europeu.

Numa altura em que a digressão já vai a meio, Ryan Adams estreou-se ontem em Portugal para um concerto intimista, feito de silêncios desarmantes e duma postura em palco que ,de tão desconfortável e trapalhona,  rapidamente fez esquecer o espaço que ia dos espectadores ao artista, naquela Aula Magna, para um local de uma proximidade quase palpável.

Relativamente composta, mas ainda longe de cheia, a Aula Magna seria transfigurada no imaginário dos presentes num pequeno bar recôndito que teria tanto do rural do interior norte-americano como da azáfama das ruas de Nova Iorque.

Passam dez minutos das 21.00 quando surge em palco sorrateiramente a figura esguia de Jesse Malin. Chapéu de fazendeiro e botas, acompanhando-se da sua guitarra acústica , a imagem country esconde a atitude punk-rocker do nova iorquino, originário de Queens.

Extremamente comunicativo e divertido intercalava o set com verdadeiros momentos de comédia sobre histórias do seu passado. Aliás, é de realçar o contraste entre a melancolia do seu reportório, ainda que  com momentos coloridos como “Wendy” -que soubemos ser uma canção sobre uma rapariga que não aquela com quem  tinha uma relação- e “Hotel Colombia”, com o à vontade e humor com que se dirigia ao público. Sobre a canção ” Almost Grown” é difícil decidir o que foi melhor: se a canção em si, se a contextualização do artista. Segundo o próprio, era uma reflexão sobre os tempos de infância, sobre o divórcio dos seus pais e do que era ser um punk em Queens e gostar de Ramones e Dead Kennedys, mas mais em concreto  de como foi posto de castigo por ter feito frente a duas raparigas que o antagonizavam constantemente e como a alternativa a “espetar dois selos” em cada uma foi , e passo a citar: “Sacar do meu pénis e bater com ele na mesa em que estavam sentadas”. Meio minuto de gargalhas depois a introdução hilariante dá lugar a um dos momentos mais comoventes que Jesse havia de protagonizar, talvez porque saber rir de nós mesmos torna ainda mais genuínas as emoções que se empregam na música não houve quem ficasse indiferente.  De resto  houve elogios àqueles que ainda vão a concertos ao vivo, aos que não ficam em casa a ver no youtube, “que vão a lojas de discos que gostam de rir e foder”. Em boa verdade, Jesse Malin, não deixou grande assunto por tocar e até o escândalo que envolve Charlie Sheen serviu de pretexto para incluir numa letra a frase proferida por Sheen, em que justificava ter pago para ter sexo: ” you pay for the leaving”.

É caso para dizer que há duas personalidades, não em conflito, mas em harmonia, em palco. Por um lado o “showman” folião extrovertido, rebelde indiferente ao mote de “sexo,drogas e rock’n roll” (cuja experiência mais próxima com drogas que teve seriam uns cereais “Sugar Smacks”  ), com um sotaque nova-iorquino pronunciado, e o artista que faz a entrega das canções, mais introvertido e reflectido, saudosista, que passaria por um nativo do Tenessee.  Quando finalmente damos por nós, passou uma hora e soube-nos a pouco. O certo é que os presentes não se importariam de voltar a ver Jesse Malin em terras lusas,  da próxima ,quem sabe, talvez já tenhamos a certeza se o senhor estava sobre a impressão de que por aqui se fala espanhol.

Finita que estava a primeira parte do espectáculo foi com alguma morosidade que Ryan Adams entrou em palco. Onze anos após o lançamento do disco de estreia a solo, Heartbreaker, o homem que se tornou no inicio do século a figura de topo da country alternativa  mais afecta ao movimento indie,  fez quem esperava desde então aguardar ainda mais meia-hora. Entra em palco acabrunhado, jeans e allstars, cabelo de quem se levantou agora da cama, o público manifesta-se com uma ovação de palmas a que Ryan responde com um sussurrado ” how are you doing?” antes de se sentar para tocar.

Ryan Adams é uma figura verdadeiramente peculiar, em palco ajeita-se atabalhoadamente, nunca encontrando forma de estar sentado ou de colocar guitarra e microfone que o satisfizesse. É estranho e encantador olhar para um artista com a bagagem de Ryan Adams que se comporta como aquele amigo que toca guitarra e nos quer mostrar a ultima canção que fez. Felizmente para os presentes este daqueles “amigos”  extremamente talentosos.

“Oh My Sweet Carolina” lá se consegue discernir após falsos arranques para ver se estava tudo perfeito. Belíssima composição retirada do álbum de estreia, serviu para estabelecer os contornos do concerto  e que seria um verdadeiro “teste de paciência e fé” tanto para o público como para o artista, como o próprio viria a admitir. Assim que chega o interlúdio e entra a harmónica surge o primeiro percalço com uma desafinação tremenda. A harmónica bem que podia ter estado nos copos na noite anterior e a cura para a ressaca de água e repetidas pancadas na mesa até pode ter resultado, mas se calhar ajudava ter o transpositor no sitio certo e não ter começado a canção meio tom abaixo. Mas vamos fingir que não aconteceu, o público bate palmas e tudo está bem quando acaba bem, o solo de harmónica lá aconteceu e não mais se verificou um momento semelhante para que não se ache que o concerto foi brilhante.

A harmónica lá se redimiu e já nem parecia a mesma em “Firecracker” e ” Come Pick Me Up”, a guitarra, essa preciosidade antiquíssima que mereceu a carinhosa alcunha de “avô”, que veio em digressão pela primeira por ser a guitarra preferida com que Ryan gravou todos os álbuns  precisou de constante atenção durante o concerto por culpa das mudanças de posição do transpositor que acelerava o desafino das cordas. Valeriam a pena as pausas entre músicas, assegurou-nos, e certamente ninguém discordou quando entre canções o silêncio que se sentia tornava ainda mais caricato o seu comportamento em palco, sempre distraído com a mais pequena coisa que lhe chamasse a atenção – às tantas projecta a imagem dum aspirador a funcionar atrás de uma montanha para explicar o incomodo que lhe estava a causar o barulho do ar condicionado- esquecendo-se de onde pusera a palheta ( estava no bolso, onde a tinha posto) e as cábulas que usava para fazer batota , vasculhando entre papeis, mudando de posição e cadeira como se à sua frente não estivesse uma sala praticamente cheia, de olhar atento e fantasticamente incrédulo.

Há uma diferença, como a que separa o dia e a noite,  entre Jesse Maldin e Ryan Adams, não desfazendo do fantástico sentido de humor que demonstrou,  nas suas palavras os concertos do Jesse “são como festas  de quintal, assistir  aos meus são como ir ao dentista”. Com as tiradas de humor  auto-depreciativo quando se dirigia à plateia lá se ia precavendo contra qualquer percalço que pudesse surgir. E tantas foram as vezes que se sentiu que algo poderia ter corrido mal mas a fragilidade a nu coadunava-se com  a vulnerabilidade e receio de quem escreve “I love you but I don’t know what to say”, verso que se espera vir a reconhecer num tema do próximo álbum.

Somente quando se sentou ao piano para tocar “New York, New York”  pareceu sentir-se confortável. A canção que ganhou especial atenção em parte por infelicidade dos atentados do 11 de Setembro pareceu ajudar a figura inquieta em palco a encontrar o bem-estar que procurava. Nunca mais se sentando para tocar guitarra ,até ao encore, parecia muito mais à vontade em palco e por alturas de “English Girls Approximately” e “16 Days” o ambiente parecia muito mais leve e não houve intervenção que fizesse que não fosse reciprocada com risos e boa disposição, ainda que fosse para dar conselhos de saúde e curar por artes mágicas aqueles que pareciam padecer de uma tosse crónica.Mas como é que se poderia levar a mal alguém que diz que só não despede o técnico de guitarra porque é o próprio?

“Strawberry Wine” e “Come pick me up” ,a antecederem a saída de palco para o encore, repõem de forma hipnotizante e crua a emotividade e introspecção que envolveu o cantautor ao longo da noite. “Come Pick Me Up”, momento pelo qual muitos dos presentes esperavam desde o longínquo ano de 2000 quase, parecia testar a força de vontade daqueles que queriam acompanhar  em voz alta as palavras de Ryan Adams. Não era esse tipo de concerto e, em retrospectiva, todos concordarão que o momento foi perfeito assim como foi.

De volta para o encore, após insistência duma Aula Magna que se recusava a parar de bater palmas, Ryan Adams presenteou-nos com temas novos. O próprio não tinha a certeza se seria capaz de fazê-los chegar a bom porto mas “os encores são suposto serem difíceis”. Sem sobressaltos de maior o primeiro dos novos temas concluí-se graciosamente e ainda convicto de que  já não sabia o que poderia correr mal anuncia “vamos tentar uma que realmente não sei”. Se foi só modéstia ou se fez batota durante a canção não podemos saber. Sabemos que gostámos. Palmas. Muitas.

O concerto dá-se por terminado, da noite de ontem na Aula Magna ficam os relatos e as memórias que cada um guardará. Não haverá registo visual do que se passou na noite de ontem a pedido do artista. Provavelmente, a existir, nunca fará jus à experiência vivida de estar presente.


sobre o autor

Jorge De Almeida

Partilha com os teus amigos