Reportagem


Sam The Kid & Orelha Negra

O eterno puto Samuel e os Orelha Negra dão tudo com orquestra e escrevem a primeira página de ouro de Coura 2022.

Praia Fluvial do Taboão

16/08/2022


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Se os Linda Martini ou os Mão Morta (ou Manel Cruz, através dos seus projectos) são figuras consagradas na História do Vodafone Paredes de Coura, Sam The Kid é uma figura que, apesar de ser uma personagem fundamental da música popular portuguesa dos últimos vinte anos e de ter actuado no festival em 2002 (onde pediu que lhe incluíssem no cachet o valor de uma torrada em Santa Apolónia), carecia de maior afirmação no palco à beira do Coura. E em boa hora compareceu, muitíssimo bem acompanhado pelos Orelha Negra (que grande concerto ali deram em 2011, no agora palco Vodafone FM) e por uma orquestra dirigida pelo maestro Pedro Moreira – todo o aparato para um concerto de uma vida, com ou sem chuva. E esta caiu, miudinha, para ajudar à mística.

Como todo o bom concerto de consagração, para além de enchente de público e dos Orelha Negra (Fred Ferreira, Francisco Rebelo, João Gomes e DJ Cruzfader) e da orquestra, o nosso puto Samuel trouxe o pai, Napoleão Mira, para declamar poesia em jeito de interlúdio entre canções, e convidados como NBC e Mundo Segundo. Um plantel de luxo para uma noite de gala, portanto.

Ganzas feitas e acesas por gente ao nosso lado que dizia com todo o à-vontade (dane-se a chuva, mais uma vez) que “gosto bué destes manos” para assistir ao arranque com a declamação por Napoleão Mira de Santiago Maior (2016). A tensão emocional daqui resultante precisava de uma performance em grande por parte de Sam The Kid. Que aconteceu, sem espinhas.

Trajado de branco, qual Homem de Branco de Paredes de Coura, é o herói da rima e da batida de que necessitamos e merecemos há duas décadas; não é o único, que (entre outros) Allen Halloween, os Microlândia, os Dealema (e obra dos seus membros da solo, em particular a de Fuse, que para um certo gato da banda desenhada é o melhor rapper) e os Mind Da Gap também merecem a honraria. Sam The Kid apresenta-se aguerrido, dinâmico e desafiador (sem entrar nas gabarolices do hip hop, que tantas vezes redundam em infantilidade), mas também nostálgico e genuinamente feliz pelo momento: recorda a actuação de há vinte anos e o amigo GQ, aliás Nuno Vilarinho/Barbosa, trágica e precocemente falecido há precisamente dez anos, que o acompanhou ao microfone nesse mítico dia 14 de Agosto de 2002.

Sem entrar pelo soturno ao recordar mais referências pessoais que já partiram, Sam The Kid relembrou o avô em Sangue. De caderno na mão para não perder pitada das memórias e das rimas, o concerto entrava em velocidade de cruzeiro, assumindo contornos de genialidade mediante os arranjos de orquestra e a valia dos Orelha Negra.

Por sua vez, os convidados NBC e Mundo Segundo ajudaram à festa em Juventude é Mentalidade e em Não Percebes. Esta última é um dos hinos do hip hop português e a interpretação no palco courense foi um balázio de volta ao passado com os decks no presente. Só discordamos de Sam The Kid nisto: com uma banda formidável como os Orelha Negra e uma orquestra, o formato da canção não foi, como reza a letra, sujo e barato, mas sim um magno acto. E houve lugar para uma “ESTA MERDA É QUE É BOA” com melodia dos White Stripes antes de tudo. Perdoa-se porque é mesmo verdade.

Como qualquer figura do hip hop que se preze, Sam The Kid tem uma canção-monumento sobre o seu passado e como se desenvolveu o seu amor pela arte: Retrospectiva de um Amor Profundo. Não é caso único, como Dedicatória dos Mind Da Gap ou Juicy, do saudoso Notorious B.I.G., mas é um retrato tão completo que mais parece um livro de memórias lido para o mic. Desde a primeira descoberta do hip hop até à primeira vez na Antena 3, é um amor sem fim para o mestre (já lhe podemos chamar isto) de Chelas. Sete minutos magníficos.

Mas a rememoração de Sam The Kid não é apenas aquela sobre o digging e sobre o caderninho de rimas e de sacar os melhores samples, que também problemas bem mais mundanos estiveram presentes, como o desejo sexual adolescente e consequente gravidez de 16-12-95. Conto urbano de excelência, é uma viagem pelo lúmpen menor de idade mas já espigadote, pelo orgasmo e pela tragédia.

E o que se passou naquele palco foi tudo menos uma tragédia, ainda que Sam The Kid reforçasse que estava “bué emocionado”. O avô dizia-lhe para se portar bem – e o puto Sam cumpriu, tornando aquele palco num quarto onde partilhou com milhares de pessoas os seus pensamentos e beats.

Se faltaram clássicos como 100, não faltaram canções como Poetas de Karaoke (aqui acompanhado por Mundo Segundo), que foi mais uma de pôr braços no ar e refrão a plenos pulmões, finando o concerto com Sendo Assim, material mais recente que comprova que Sam The Kid não vai por modas e faz as beats que quer. E, nesta noite, esteve impecavelmente acompanhado por uma banda e por uma orquestra que ampliaram as composições até um nível estratosférico.

Não sabemos se os presentes percebem o hip hop ou se percebem o que diz Sam The Kid, mas todos ficaram com a certeza de que foi um concerto de antologia. Ao contrário de Cântico Negro de José Régio, declamado por Napoleão Mira a meio da actuação, sabemos para onde vamos: a um concerto de Sam The Kid e de Orelha Negra.

 

 

 


sobre o autor

José V. Raposo

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