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A noite, cálida com ventos primaveris, o cenário, uma das mais belas e idílicas salas portuguesas. Foi assim que na passada sexta-feira no Teatro São Luiz em Lisboa a cortina se ergueu desvelando um palco repleto de músicos e um coro imponente a marcar compasso para a entrada de Samuel Úria que, nas muitas cores do seu quimono esvoaçante e de pandeireta em punho, deu corda ao início de uma das noites mais reconfortantes que iremos guardar na memória desta estação. Carga de Ombro é o novo trabalho do músico de Tondela e a sua apresentação foi o mote para reunir amigos, fãs e curiosos, onde encontrámos também muitas caras conhecidas da música portuguesa.
Com plateia e camarotes repletos, logo pela manhã a bilheteira online indicava que o espetáculo se encontrava esgotado e um amigo meu na iminência de ficar a ver navios exasperava “onde é que já se viu um gajo da FlorCaveira esgotar uma sala?”. É verdade, os tempos de clandestinidade da FlorCaveira já lá vão e muitos têm sido os talentos a brotar desta editora à margem, como Samuel Úria que teve uma merecida sala cheia para o seu roque enrole mestiço de folk, gospel e fado.
“Dou-me Corda”, primeiro single retirado a Carga de Ombro, que a censura do YouTube já tentou em vão boicotar, abriu a noite com estrondo. Quem já viu Úria em concerto sabe bem da sua aptidão natural para nos dar conversa, mas diz-nos que uma das suas resoluções para este ano é contrariar isso ou talvez não, já que a próxima música nos comanda a “exprimirmo-nos até que as pedras tomem o nosso lugar” e segue-se “Espalha Brasas” do anterior O Grande Medo do Pequeno Mundo. As vozes do coro nas duas primeiras músicas, e em outras que se seguiriam, conferem uma majestosidade de som que nos envolve e faz questionar porque é que não vemos mais vezes coros em concertos? É que a este lado gospel de Úria assentam na perfeição.
A próxima vem com dedicatória sentida, “Aeromoço” vai para Bruno Morgado, “lobo solitário” e um desses bem guardados segredos da FlorCaveira, que Úria deseja que todo o português num futuro próximo conheça tão bem como conhece o seu fado ou o seu bacalhau. Segue-se a hora de recuar ao passado, “Nem Lhe Tocava” vai para “aqueles que dizem que o primeiro álbum é que era fixe”. É uma balada que nos apanha desprevenidos e engana na sua aparente fragilidade, as suas palavras asseguram com determinação o único caminho que vale a pena ser seguido, “se isto fosse fácil eu não o fazia, se fosse difícil eu nem lhe tocava”, confrontam-nos com os perigos em nos estagnarmos, “não há maior risco do que ser-se antecipado” e deixam-nos convictos de que não há por aí muita gente capaz de tratar o português por tu, neste desembaraço certeiro como Samuel Úria.
Seguimos viagem fora pelo disco novo e “grita-se à toa” na satírica e divertida “Repressão” até chegarmos a “Carga De Ombro”, que dá nome ao álbum, esse termo roubado ao mundo do futebol que na passada sexta deve ter posto os nervos em franja a muita gente ali presente mas que Úria desdramatiza com humor e bom senso “de que nos serve o esférico senão para as alegorias desta vida?”. “Vem Por Mim”, “Cabo Do Medo” e “Graça Comum” instalam um ambiente intimista e continuam a desvendar-nos um Úria mais pessoal, mais virado para dentro neste último disco, nas palavras do próprio, agora apenas na companhia do seu produtor Miguel Ferreira ao piano. Mas o momento mais arrebatador da noite, que arrancou fortes aplausos surpreendendo Úria logo aos primeiros singelos acordes, estava guardado para “Lenço Enxuto”, tivesse também entrado Manel Cruz em palco e teríamos descolado num voo sem retorno, quem sabe se haverá essa sorte na próxima semana no concerto do Porto? Mas mesmo sem Manel é difícil colocar em palavras a emoção com que esta música nos atravessa deixando-nos atordoados desde a sua pureza inicial até à apoteose instrumental final quando todos os músicos retornam ao palco.
Dominam-se os arrepios ao som do roque em “Palavra-Impasse” e imaginamo-nos em danças exóticas com “É Preciso Que Eu Diminua”, onde talvez numa próxima não existam cadeiras que nos coíbam de abanar a anca. O repique forte de “Não Arrastes O Meu Caixão” contrasta com a efemeridade da folk de “Barbarella E Barba Rala”, uma saudosa e bonita surpresa da noite. Quase a chegar ao fim, Úria fala-nos um pouco de como a próxima música é a razão que hoje une toda esta gente em palco e por ali reconhecemos muitas caras. Dos Pontos Negros Úria foi buscar Filipe Sousa ao baixo, David Pires à bateria, Jónatas Pires à guitarra, Silas Ferreira aos teclados, mais Tiago Ramos na bateria e coros e Miguel Sousa no órgão. “Ei-lo” é uma música poderosa que atravessa os caminhos difíceis da fé e terá sido na Igreja Baptista, fé que muitos destes músicos professam, que terão germinado estas amizades. Selma Uamusse junta-se ao palco e a sua voz de força inabalável leva até os mais cépticos a duvidarem de si.
Perto do final da noite Carga de Ombro estava apresentado e nós convencidos. Acredito que todos sairíamos dali de CD na mão mesmo que este não fosse oferta e sem que desta vez fosse preciso Úria dar-nos graxa para comprá-lo. Carga de Ombro é mesmo um grande disco para a música portuguesa deste ano.
O encore seria generoso a percorrer os anteriores álbuns, batemos o pé com a folk de “Essa Voz”, e despedimo-nos mais uma vez de Prince numa homenagem com Úria a dar provas do seu falsete sexy numa versão de “Kiss”, fazendo uma ponte perfeita para a energética “Teimoso”. “Forasteiro”, “Império” e “Lamentação” fechavam a noite com o público a aplaudir de pé fervorosamente este bocadinho tão bem passado, pelo que ninguém seguramente esperaria que Úria com a sua guitarra, músicos e coro saltassem para a plateia, percorrendo numa marcha lenta a entoar à capela os versos de “Carga de Ombro” até ao hall de entrada do São Luiz despedindo-se de nós enquanto abandonávamos a sala. É que são estes os momentos que nos ficam no coração, ombro a ombro, feitos de uma comunhão, em que se recebe na mesma medida em que se dá.