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O SEMIBREVE, infelizmente, dura apenas um fim-de-semana. Porque bem nos podíamos habituar a este ritmo — conversas e concertos ao início da tarde, o centro de Braga calcorreado em animada conversa, revendo caras conhecidas em comunhões anteriores; e depois, ao fim do dia, uma experiência colectiva como poucas se farão, com atenção aguçada e natural curiosidade. A Sala Principal do Theatro Circo transforma-se e transforma-nos.
Este ano, pela primeira vez — e espera-se a primeira de muitas — o SEMIBREVE foi precedido e complementado pelo Index, iniciativa levada a cabo para pensar a relação entre a arte e a tecnologia. É evidente a relação, dado que o SEMIBREVE tem, ao longo dos últimos oito anos (este é o nono), proporcionado palco a imensas manifestações artísticas que se materializam com o auxílio das novas tecnologias; e foi, além disso, razão determinante para que Braga tão acerrimamente promovesse as media arts. Houve conversas e performances, além de algumas instalações comissionadas.
Na quarta-feira, bem antes do início do SEMIBREVE, já por cá andava Andreas Lutz, o vencedor do EDIGMA SEMIBREVE Award deste ano. É uma iniciativa que premeia a “criação de trabalhos que explorem a interactividade, com som e imagem apoiados no uso de tecnologias digitais”, e Lutz venceu com Offset XYZ, um monumento de difícil descrição. Esteve instalado no Salão Nobre do Theatro Circo: um enorme pano branco envolvido por uma estrutura esférica metálica, à qual está fixado por dezanove cabos pneumáticos; por acção dos cabos, o pano ora se afasta ora aproxima do centro, e dado que isto acontece em todos os pontos de contacto com os cabos, o volume da figura que o pano delimita é variável.
São cerca de três metros, de altura e largura, e converso com Andreas enquanto contemplamos a peça. “Este trabalho é de 2018, e já em obras anteriores trabalhei com movimento — movimento linear — e tecido. E sempre me fascinou a ideia de que o espaço não é fixo; ele próprio pode mudar. E comecei por aí. A ideia para esta peça foi criar uma inteligência artificial física; todos os movimentos, e todo o comportamento da peça, é um código semiótico. Como uma linguagem.”
Enquanto falamos, a figura branca distende e contrai elegantemente, musicada pelo suave ruído da compressão pneumática que, confessa Andreas, “não foi intencional” e não fazia parte do plano original: é uma condição imposta pela materialidade mecânica da obra. Um ente que existe e se manifesta de forma independente ao humano, expressando-se espacialmente numa fundamental indiferença (dado que não está dotada de nenhum sentido de percepção) a tudo o que a rodeia no Salão Nobre.
Ocorre que a ocupação que faz do espaço é, quiçá, algo parasitária; dificilmente tomamos este objecto como parte do mobiliário, por exemplo, pois não tem uma natureza inerte, e Andreas reforça várias vezes uma ideia de eventual agressividade, manifestada explicitamente, ou por nós interpretada, neste corpo gigante. Como agiríamos se em vez de uma, houvesse dez; e pudesse assaltar-nos outros sentidos que não apenas visão e audição? Há um diálogo arquitectónico, sobretudo pela ocupação espacial e que não será uma hipótese desprezível: basta pensarmos na crescente proliferação de drones no espaço público.
O SEMIBREVE tem tido missão, nos últimos anos, de proporcionar estas experiências interdisciplinares, mas é no domínio da arte audio(visual) que se afirma como festival referência a nível europeu (leia-se transatlântico!). Ao longo dos três dias de festival, juntaram-se em Braga Suzanne Ciani e Morton Subotnick, vultos consagrados da música electrónica, a par das propostas modernas e marginais de Oren Ambarchi ou Felicia Atkinson. São já nove anos de um retrato mutante da história da exploração sónica, alguma já com mais de cinquenta anos, a par das reverberações que esse fenómeno produziu desde então.
Recuperamos essa primeira noite, quando Morton Subotnick, acompanhado pela projecção vídeo de Lillevan, produziu a partir de pouco mais que um antigo sintetizador Buchla (extraordinárias máquinas analógicas) uma jornada de descoberta acústica, que teria segunda dose no dia final, com Suzanne Ciani. Os sons que ambos conjuraram continuam, mais de uma semana depois, absolutamente inenarráveis — desconexos entre si, inquietos e irrepetíveis, são, pela sua inefabilidade, muito mais preciosos que quaisquer outros, como se o som, desligado de qualquer pretensão narrativa ou emocional, pudesse ser apenas forma. Reivindicação não supérflua, e demonstrada trivialmente: lembram-se da última vez que um som vos surpreendeu? Curiosamente, ambos Subotnick e Ciani têm tangentes ao mercado da publicidade e da distribuição musical; quando o primeiro lançou Silver Apples of the Moon em 1967, trabalho de vanguarda electroacústica, o sucesso foi estrondoso (e catalogado como música clássica); Ciani, por sua vez, produziu largamente para anúncios publicitários. Quero com isto indicar um fascínio pelo som na sociedade (ainda que de consumo) que, entretanto, se perdeu — o som é agora ruído, e a maior expressão da sua ordem, a música, é actualmente acessória a outra coisa qualquer.
Por isto, vem a propósito o espectáculo de Alessandro Cortini. O italiano colabora com Trent Reznor nos Nine Inch Nails, e tomou a oportunidade para apresentar o seu disco novo VOLUME MASSIMO. Já suspeitávamos algum distanciamento para a programação habitual, e confirmou-se: acompanhou cada uma das suas canções com o videoclip respectivo, todos eles muito coloridos e bem produzidos, repletos de actores coreografados. Se, por um lado, as faixas resultam — alternam, na base, entre uma matriz dançável e crescendos dramáticos —, a fórmula está tão definida (sobretudo visualmente) que pouco estimulará o ouvinte, resignado a ceder ao entorpecimento (ou ao movimento). Que isto não seja tomado como uma crítica, porque VOLUME MASSIMO acaba por ser uma síntese de sons experimentais a resvalar para o domínio da pop, e logo aí arrancou o nosso aval.
Caso se deseje a exploração sem preparação nem destino, que também disso se pode fazer música, levá-lo-íamos a considerar o concerto inédito de Oren Ambarchi com Robert AA Lowe, já no dia de Sábado, quando levaram a palco um diálogo aparentemente sustentado sobre coisa nenhuma; além de totalmente improvisado, não se coibiram de abraçar, em partes, o silêncio. Contrastavam na instrumentação: o primeiro munido de uma guitarra e vários pedais, o outro com um muito apetrechado sintetizador modular e um pequeno aparelho que reagia, acusticamente, ao contacto. Deu-se fenómeno semelhante aos concertos de Ciani e Subotnick (talvez extrapolado pela ausência de imagem): há um hiper-estímulo à audição, confrontada com uma linguagem que lhe é estranha, e neste caso em particular junta-se a ininteligibilidade do que acontece diante de nós. Numa primeira fase, os ímpetos foram esparsos e metódicos; uma exploração cuidada e quase minimal; posteriormente, houve até momento para um suave crescendo, que associaríamos ao ambient, mas que, neste contexto, foi como tecido que unificasse tensões votadas, até então, ao desencontro. Saímos mais intrigados que manifestamente satisfeitos, na esperança de que, com um pouco mais, desvendássemos algo. Ambarchi e Lowe despediram-se sob uma coroa de aplausos, recompensa justa pela coragem demonstrada.
Nessa mesma noite, e sem que algo verdadeiramente o anunciasse, instalou-se, discreta e subtilmente, uma das mais violentas e opressoras experiências de todo o festival. Drew McDowall, acompanhado na imagem por Florence To, emulava Time Machines, disco homónimo descendente duma variação dos idos Coil, com quem na altura encetou colaboração. A projecção, com linhas rectas num arranjo geométrico e de mínima variação, complementou o assalto repetitivo de algo que não chegava a ser uma melodia — talvez, no máximo, um padrão —, também ele de pouquíssima variância. Originou, isto, um confronto físico e desgastante, implacavelmente monótono e monolítico; momento após momento, enclausurados pelo som e pela imagem, desamparados pela ausência de qualquer indício de passagem temporal: sentimo-la diluída e circular, conducente à desorientação, e nem o sono, ao qual nos recolhemos já em desespero, amenizou tão singular experiência. Provavelmente, o único dos espectáculos no qual a música serviu como meio e não um fim (exceptuando o clubbing do gnration) — que era, neste caso, a desconstrução do sentido de tempo.
Nos dias de sexta e de Sábado, a blackbox do gnration foi local de conclusão das festividades, com especial incidência na música de dança. Propostas que, infelizmente, não me despertam o mesmo entusiasmo, apesar de lhes reconhecer um valor mais explicitamente comunal na indistinta massa de corpos que reage, como um órgão perceptivo único, às incisivas batidas de Nik Void, ou à mais flexível e divertida Avalon Emerson. Fenómeno físico diametralmente oposto ao que nos proporcionaram os noruegueses Deaf Center, na Imaculada Capela do Seminário Menor; o único projecto deste ano que se poderá dizer, mais tradicionalmente, ser um grupo, transformou este espaço moderno e revitalizado num ponto para reflexão sobre a música ambient, ou o que se poderá ainda dizer modern classical.
Já não não é novidade para ninguém que o SEMIBREVE é, e cada vez mais isto se confirma, um festival de referência em vários quadrantes da arte moderna. Se, por um lado, a selecção programática do Theatro Circo e gnration tem sido irrepreensível e representa a mais fina nata da oferta electrónica experimental contemporânea, a primeira edição do Index abriu portas para diálogos e reflexões mais abrangentes e plurais; para o ano, será a décima edição de um improvável fenómeno, e mal podemos aguardar a sua materialização. Venha ele!
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)