Reportagem


Stereolab

Um conflito de antologia entre o analógico e o digital.

Lux

03/11/2022


© Steve Double

Os Stereolab são aquela banda dos cromos fixes que gastam demasiado dinheiro em discos. São a banda dos gajos que, há vinte anos, tinham os discos certos e as t-shirts de manga comprida de uma qualquer banda de culto a quem a banda de Londres prestava homenagem consubstanciada nas suas canções. É bem possível que parte significativa dos seus fãs tenha formado bandas e a sua teia de influência estende-se por muito boa gente, que vai de Blur e Deerhunter a Tyler, The Creator. São, pois, um grupo fundamental para se perceber a música popular alternativa das últimas três décadas. E que, após actuar no NOS Primavera Sound em 2019, está de regresso a Portugal.

Mais a mais, sabe-se que se é uma banda fixe quando se é citada num dos grandes filmes (e livros) desta vida, High Fidelity. E a fixeza (sinónimo de “relevância”) dos Stereolab reflectia-se na fila para entrar no Lux, que teve casa cheia.

A primeira parte ficou a cargo de Alberto Montero. O cantautor da zona de Valência, que conta com vinte anos de carreira, apresentou pontualmente a sua folk escorreita, logo a partir das 22:30h.

Dirigindo-se em bom português ao público, procedeu à interpretação de canções folk com fundo emocional, um pouco à guisa de Joan Manuel Serrat, ainda que sem os arranjos deste. Destaque para El Juego del Olvido, onde a falta de baterista não o demoveu de conferir textura à canção – a falta da restante instrumentação da sua obra não o ajudou na sua actuação, contudo. Estreou, ainda, uma canção nova, Castillos en el Aire.

Meia hora de folk sem grande chama mas com alguma alma. O rebentar da escala desses indicadores ficaria para os Stereolab.

Ei-los, então, pelas 23:20h. Tirando Andy Ramsay, absolute unit já devidamente emboscado num bunker composto pela bateria e por um amplificador, um por um os membros dos Stereolab de 2022 ocuparam o exíguo palco do Lux: Tim Gane, co-fundador da banda, Joseph Watson, actual mago dos sintetizadores, Xavier Muñoz Guimera, actual baixista e, por fim, Laetitia Sadier, co-fundadora da banda e a principal voz do grupo.

Ao arrancarem com Neon Beanbag, os Stereolab relembram-nos de muito boa gente que passou pela banda ou não fosse a canção uma pequena homenagem a Mary Hansen, tragicamente falecida em 2002. Instrumental e melodicamente é um cruzamento entre os anos sessenta (de Jacques Dutronc e Françoise Hardy) e o final dos anos noventa, entre o rock alternativo aventureiro (por oposição à atrofia a que o grunge e a britpop se votaram a partir de certa altura) e a pop de pastilha elástica de ontem.

Desengane-se quem ache que a idade já pesa na banda. Mal ressoava o último acorde da abertura e Sadier já anunciava, sem peias, que se seguiria Low Fi – uma analepse de setlist de dezasseis anos (de 2008 para 1992).

Uma canção que representa o lado mais guitarreiro da banda (aqui muito na veia de Sister Ray, dos Velvet Underground, ou dos “primos” artísticos norte-americanos Yo La Tengo), mas também aquele que os mostrou ao mundo como uma força de distorção de som e de conceitos, encimado pela voz de Laetitia Sadier e sua letra dadaísta. A noite ficou ganha a partir daqui.

Antes de Refractions in the Plastic Pulse, da obra-prima Dots and Loops, Sadier anuncia, com autoridade, que “vêm aí quinze minutos desta canção” (“MANDA VIR!”, berram lá atrás, com igual autoridade). Obra mais monumental ao vivo do que em estúdio, traduz-se num colosso onde o dub, o indie e a lounge music (e a costela post-rock do grupo) se encontram num shaker e desaguam num cocktail de mais de um quarto de hora, pelos seus vários andamentos. Tudo isto interpretado por Gane, Sadier, Ramsay e companhia como se nada fosse, sem um pingo de cansaço ou de desafinanço. Uma montra do que a banda era e continua a ser.

Os Stereolab não só desafiaram convenções, como também estabeleceram outras, quais situacionistas da música popular. Se se preferir, seguiram o cursus honorum advindo do adogmatismo do punk: o de ir experimentando conforme se lhes desse na telha e depois logo se veria. Terem estabelecido a sua própria editora, a Duophonic, também não foi má ideia para a indie cred.

E o que se vê e ouve é glorioso. É uma banda que não perdeu andamento em dez anos de hiato e que nem um palco demasiado pequeno para tanto equipamento pode parar. A elegância de Sadier, a garra de Gane (para todos os efeitos um primo britânico de Ira Kaplan), a engenharia de Watson na maquinaria analógica e de Ramsay como a batida de Stereolab mantêm intactos aquilo que os fez grandes.

Mais um exemplo disso foi U.H.F. – MFP, apresentada por Laetitia Sadier como “o nosso pequeno hino anarquista”. Faixa de Space Age Bachelor Pad Music, EP que propalou os Stereolab do underground para um contrato com a Elektra, é mais um apanhado do input das influências da banda para o output que os distinguia dos demais: diálogo entre guitarras, os circuitos dos sintetizadores e os samples. Se naquela o som propendia para as guitarras, em Miss Modular o destaque foi para as teclas e botões, com igual impacto sobre a audiência.

Cliff, a mascote da banda (retirada de uma banda desenhada de Anton Holz Portmann) aponta para nós de forma jocosa desde o bombo, como que a exclamar “esperem pela pancada, cromos!”. E essa pancada prosseguiu no desfile de canções, com admirável entrosamento entre o ex-power couple Gane-Sadier e em formato greatest hits, mesmo tratando-se de uma banda cujos concertos bem poderiam durar quatro horas, atentas a qualidade e variedade do catálogo.

Dentro da sua avant-pop, foram sempre peritos em captar influências de ponta, isto é, daquelas que revolucionaram a música popular ocidental e Harmonium é disso exemplo. Uma batida motorik e os pedais de Gane, num ensejo kraut à beira do Tejo, cuja letra é mesmo condigna com o que sai do PA do Lux: uma agradável e intensa dor penetrante num final de noite de Outono.

Este diálogo entre guitarras e o analógico e o digital, entre Yo La Tengo e Jacques Dutronc, teria mais um capítulo em Delugeoisie, do último (até à data) álbum da banda, Not Music. Apresentada como “um hino às alegrias do materialismo”, é mais um dos confrontos inerentes aos Stereolab, isto é, o do anarquismo contra o materialismo; contém, ainda, um outro conflito: a quebra rítmica e melódica no último minuto e meio, digna de contemplação.

Com o kraut frenético de Super-Electric foi encerrado o alinhamento principal. Hipótese de encore completamente confirmada pela estadia de Andy Ramsay no seu bunker e prontamente principiou Gus the Mynah Bird, essa invectiva contra o totalitarismo e o consumismo.

Continuava tudo no sítio: Sadier a oscilar entre a guitarra e o sintetizador e a sua derradeira arma, a voz. Por esta altura já só se queria um rasganço final e esse veio com French Disko, outra canção-mostruário de Stereolab, interpretada com brilhantismo ímpar. Com uma Excursions Into “oh, a-oh” (muito superior à versão de estúdio) plena de fôlego deu-se a estocada final para fechar um concerto magnífico.

Trinta e dois anos depois da formação, treze depois do hiato, três após o regresso e perante a prova produzida pela banda anglo-francesa, profira-se sentença: os Stereolab são uma das maiores e mais influentes bandas das últimas décadas e têm ainda o condão de ser uma enorme banda ao vivo. Quem disse que laboratórios não têm alma?

Um conflito de antologia entre o analógico e o digital.


sobre o autor

José V. Raposo

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