Reportagem


Super Bock em Stock

"Isto é aquela nova batida de Lisboa"

Avenida da Liberdade

23/11/2018


De volta ao nome e patrocínio originais, o Super Bock em Stock agitou novamente a Avenida da Liberdade, uma das artérias mais pulsantes de Lisboa. Este ano o cartaz encontra-se despido de nomes mais sonantes, do que em edições anteriores, um factor que tem as suas vantagens na hora de traçar o roteiro pelos vários concertos, facilitando o sobe e desce na avenida, bem como as ingratas sobreposições de horários. Dito isto, no primeiro dia conseguimos assistir a praticamente tudo o que mais nos interessava, sem pressas ou grandes cortes e, como tem vindo a ser uma constante, desde algumas edições para cá, as nossas atenções centraram-se pelo topo da avenida, com o Capitólio a ser palco de todas essas novas batidas, internacionais mas sobretudo nacionais, que finalmente começam a reclamar o espaço merecido nos grandes festivais portugueses.

Pedro Mafama é uma dessas novas vozes por cá que vimos no Capitólio. A sua música assim como a sua postura e indumentária em palco reclamam essa união entre novo e tradicional. Um pote onde cabem todos os estilos sem preconceitos na hora de misturar um fado com um tarraxo ou um fandango com um funaná – “isto é aquela nova batida lisboeta “, diz-nos a meio do concerto, e de que interessam todas essas gavetas onde na nossa cabeça compartimentamos estilos, quando temos ali à nossa frente alguém a mostrar-nos que tudo é tudo, e que, quando bem misturado, faz todo o perfeito sentido? “Quem é que disse que o fado não pode ser dançado?”, arrisca mais à frente, com a sua meia branca puxada até ao joelho, sobre a calça Nike, de gorro e passos à fandangueiro, este rapaz que por vezes nos parece um rapper cheio de atitude, outras, um fadista condenado. Pedro Mafama é tudo o que  Lisboa está a criar e que muitos ainda teimosamente escolhem não ver.

Lisboa é também Cabo Verde e por isso fomos avenida abaixo para encontrar uma Casa do Alentejo suada onde não cabia nem mais um pé de dança, para fazer estremecer o seu soalho de madeira. Ali chegados não precisamos de ver nenhum outro concerto deste Super Bock em Stock para saber que está encontrado o baile e a festa do festival. Provavelmente já todos vimos Fogo-Fogo mais do que uma vez, mas surpreende-nos sempre a sua alegria, a leveza do seu funaná, o “sorriso cabo-verdiano de Danilo Lopes” que foi das melhores coisas que aconteceu na vida de David Pessoa e nossa também ali nesta noite, onde todos estamos convidados para ser livres a dançar, sem ninguém para nos julgar.

Fogo-Fogo no Super Bock em Stock

Fogo-Fogo

Foi algo contrariados que chegados ao final do concerto de Fogo-Fogo abandonámos o baile e passámos pelo Coliseu dos Recreios para espreitar um pouco de Manuel Fúria e os Náufragos, com os seus vários convidados. Chegámos a tempo de ver Samuel Úria cantar com Manuel Fúria “Procuro a Claridade”, canção tão antiga como a amizade que os une, mas a sala meio despida e apática, bem como o sentimento de velhas glórias que pairava no ar não nos convenceu a ficar.

À saída do Coliseu apanhámos, numa conversa alheia, alguém comentar que ia também já para cima porque não queria perder lugar para ver “aquele fenómeno do tal Conan Osíris”. Sorrimos ao ouvir a palavra “fenómeno”, aliás uma das palavras que mais ouvimos no seu concerto ontem no Teatro Tivoli. Quanto a nós, antes do “fenómeno”, passámos ainda pelo Capitólio para ver o rapper angolano NGA, onde encontramos uma pequena fila à entrada, embora lá dentro a sala estivesse muito longe de estar cheia (como tem acontecido até agora em muitos outros concertos deste Super Bock em Stock), mas não pudemos deixar de sorrir novamente ao comentário dos rapazes ao nosso lado: “Angola agora já tem fila mano…”. E ainda bem que Angola agora já tem fila, e que Angola agora já tem palcos dentro da grande capital, para que rappers como o NGA cheguem a outros públicos, e tornem mais próximas a todos essas histórias sofridas de “filhos de rua”, mas sobretudo a mensagem com que nos deixou: “depois do amor mais nada importa” e de como devemos todos fazer disto tudo um lugar melhor os jovens e as famílias.

Entrada dramática para Conan Osíris com o palco do Teatro Tivoli de luzes apagadas e um público já ansioso por levantar o rabo da cadeira. E dizemos rabo, como poderíamos dizer cu ou peida, porque daqui em diante é o próprio Conan Osíris quem nos dá o direito de usar todas as expressões corriqueiras que tanto usamos no nosso dia a dia, mas que nos abstemos em reportagem, como em tantos outros contextos na nossa vida, porque sentimos que isso iria tornar a nossa análise “menos séria” ou “mais vulgar”. Na música dita “séria” acontece o mesmo e é aí que Conan Osíris entra para desconstruir todos esses preconceitos. E desenganem-se os que acham que estamos na presença de uma espécie de Manuel João Vieira com o seu uso de palavrões ou jogos de palavras que provocam a piada e o riso fácil. Conan Osíris pretende fazer-nos rir, claro que sim, e dançar muito também, mas há mais sumo nas suas palavras do que aquilo que muitos pensam, e tanto é capaz de falar-nos a sério sobre temas sérios (aos descrentes vão ouvir “Barcos”, antes de prosseguirem o resto desta leitura, – um dos momentos mais belos de ontem), assim como é capaz de falar a brincar sobre temas sérios: “sistema nacional de saúde”, alerta aos mais distraídos antes de “100 Paciência”, uma paródia a uma consulta médica, uma sátira afiada, bastante óbvia a todos os que conseguirem passar para lá do riso fácil que expressões como “fui ver se era encefalite” ou “cara de ordinário” provocam, e ver o outro lado.

Conan Osíris no Super Bock em Stock

Conan Osíris

Claro que muitos dos que ontem encheram o Tivoli foram sobretudo em procura do “fenómeno” da figura de samurai exótica, do seu tarraxo de pista de carrinhos de choque, do seu fado aciganado, da sua dança esdrúxula (e do seu bailarino) meio oriental, meio africana, meio ninguém sabe bem o quê, mas muitos foram sobretudo em procura de umas gargalhadas – e isto, honestamente, irrita-nos um pouco. Percebemos as gargalhadas que rebentam ao nosso lado ao início com “Borrego” e que funcionam como uma espécie de libertação para quem não está assim tão confortável quanto isso com aquilo que está a ver, que fazem até lembrar aquele típico riso nervoso quando alguém fala de sexo numa conversa. Irrita-nos porque se existiram momentos para rir, outros houve que não, e só não queremos que o chamado “fenómeno” Conan Osíris seja visto apenas como isso. Queremos que Conan Osíris seja visto por aquilo que realmente é: alguém que a meio da actuação é capaz de dizer com naturalidade coisas caricatas como “acho que hoje estou com bué macacos, não consigo respirar bem”, que “chuta” música atrás de música interagindo com o público de forma muitas vezes ternurenta, alguém que tem o diabo no corpo e se requebra a dançar, que mistura fado e tarraxo e faz disso todo o sentido, alguém que se despede com uma música tão bela e tão sua como “Amália”. E se houve “os de riso fácil”, também por lá houveram muitos ontem que vêem Conan Osíris para além de toda essa “celulite”. A meio da actuação, após um agradecimento do cantor em que nos confessou que há muito aguardava esta noite ali connosco no Tivoli, uma rapariga gritou: “devias era estar no Coliseu!” – um desejo que seguramente não deverá levar muito tempo a tornar-se realidade.

Não nos recordamos de quem ocupava a essa hora o coliseu, até porque de seguida regressámos ao Capitólio onde demos de caras com uma fila que chegava até à avenida, já com alguma barafunda à entrada com a segurança a tentar segurar toda aquela gente que não queria sequer acreditar que estava a perder a primeira da noite para Masego – “Tadow”. E para nós a noite podia ter terminado ali, casa cheia para o saxofonista, cantor e músico de origem jamaicana, que entre malabarismos com garrafas de água, improvisos ao piano, bateria e coros, orquestrou verdadeiros momentos jam com a sua banda como não nos recordamos antes ter visto alguém fazer. R&B, hip hop e até umas piscadelas de olho ao jazz, momentos de brilhantismo com o seu saxofone, coros exímios e sobretudo muita, mas mesmo muita energia e boa disposição, entre público e banda, um dos melhores concertos para este Super Bock em Stock, que só falhou ao não conseguir perceber atempadamente que o Capitólio não seria suficiente para toda a gente que queria ter partilhado do mesmo e não conseguiu.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

Vera Brito

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