Reportagem


Super Bock em Stock

A simplicidade de vozes sublimes e marchar na pista de dança

Avenida da Liberdade

22/11/2019


Sejamos francos: o cartaz para o primeiro dia da edição deste ano do Super Bock em Stock não causou espanto quando comparado com edições anteriores. Entre o alinhamento desta sexta-feira sobressaiam alguns nomes obrigatórios de escolha, mas chegámos à Avenida da Liberdade certos de que seríamos poupados ao habitual frenesim do sobe e desce entre os vários espaços da movimentada artéria da capital e às escolhas ingratas das sobreposições horárias. Em resumo, conseguimos ver praticamente um pouco de tudo daquilo que pretendíamos, sem sofrer com salas sobrelotadas e filas irrealistas nos acessos às comodidades do festival. Alguns dirão que esta edição perdeu batimento cardíaco, por aqui confessamos que foi até uma agradável surpresa poder navegar em águas calmas neste primeiro dia – é possível que estejamos a ficar algo velhos para correrias.

No entanto concordamos que a adição de mais um par de nomes fortes a este cartaz teria sido importante e o espaço onde isso foi mais notório foi o Capitólio. Desde que abriu novamente portas, após 30 anos de encerramento, tornou-se imediatamente num dos palcos maiores do festival, oferecendo-nos muitas das melhores memórias das últimas edições: Masego, IAMDDB, Valete, Oddisee e Talib Kweli, entre outros, encheram o teatro pelas costuras, deixando muitas vezes o Coliseu dos Recreios no mesmo horário a meio gás, fazendo do Capitólio símbolo do melhor hip hop nacional e internacional do festival, com muitos dos melhores gigs que foi possível ver nesses anos. Um legado, curto mas importante, que obviamente torna a programação desta edição algo desoladora, sem desmerecimento para os artistas que a integram, alguns dos quais acreditamos que, daqui por pouco tempo quando a sua carreira florescer, conseguirão sem grandes problemas arrastar consigo massas consideráveis de público.

AMAURA

AMAURA

É o caso de AMAURA que estreou ontem o palco principal do Capitólio, num concerto fluído e delicioso de r&b, que oscilou entre momentos de languidez dissolvente, como “Só Sinto” e “Maré Doce”, e outros de arrebatamento juvenil como “Surfista da Banheira”. Maura Magarinhos é uma contadora de histórias nata, com um à vontade em palco natural, demasiado jovem para a sabedoria do seu timbre grave, que tanto se nos afigura próxima e terra-a-terra, como alguém ainda indecifrável. De uma coisa estamos certos: EmContraste é apenas o primeiro passo de uma carreira fulgurante e o seu concerto um dos pokémons mais valiosos neste primeiro dia.

Ainda no Capitólio, e antes de AMAURA, coube a João Tamura abrir o palco exterior do teatro, tarefa sempre algo complicada às primeiras horas da noite, num dos espaços mais recônditos do festival, com um público disperso e algo ausente para as histórias, também elas demasiado maduras, deste jovem de Benfica. O EP Singapura (Acto I), editado no mês passado e agora apresentado, é uma estreia ambiciosa, melódico nos beats e na instrumentação, poético e pesado nas palavras: “Naquele fumo branco que invade o mundo e me deixa rouco. Os gestos são dos loucos e os lábios seda gasta. O pouco na mesa não basta: a pobreza que chega e te afasta. E te mata…”. Pouca gente para o seu concerto, mas sentiu-se um começo auspicioso – seguramente que novos palcos, com mais público, estarão reservados no futuro de João Tamura.

Cálculo

Cálculo

Regressaríamos uma vez mais ao Capitólio para Cálculo, que mostrou estar à altura na tarefa de encerrar a programação do teatro neste primeiro dia de festival. Extrovertido e energético, o músico de Barcelos foi quem mais gente levou ao Parque Mayer nesta noite, provando que a escolha mais instrumental e r&b de Tour Quesa foi acertada, e que embora os momentos de rap façam um equilíbrio salutar, é nestas águas que Hugo Martins parece navegar melhor.

Capitólio à parte, os concertos que nos mereceram maior destaque nesta noite aconteceram em outros palcos do festival. Comecemos pela surpresa e festa de Meute, na estação ferroviária do Rossio. Se por lá encontrámos verdadeiros fãs desta armada alemã, muitos eram também aqueles que não faziam a mínima ideia daquilo a que iam. No final, acreditamos que ambos os lados saíram com as expectativas superadas. Confessamos que não contámos quantos elementos estavam ontem em palco, mas diz-nos a Internet que esta “techno marching band” é constituída por 11 músicos. Conseguem imaginar uma pista de dança feita por um bombo incansável, ajudado por uma percussão meticulosa de tambores e xilofones, com metais que vão da tuba ao trompete, trompa, saxofones e trombone, numa reciclagem da música electrónica original e minuciosa, em que até os drops parecem ganhar mais intensidade? Conseguem imaginar, por exemplo, uma “You & Me”, dos Disclosure, tocada assim? Se não conseguem é melhor não perderem a próxima passagem dos rapazes por cá, que segundo os mesmos, acontece já no próximo ano – garantimos que é uma experiência que não vão querer perder.

Jordan Mackampa

Jordan Mackampa

E os concertos pelos quais iremos verdadeiramente recordar este primeiro dia do Super Bock em Stock chegaram perto do final da noite: Jordan Mackampa e Michael Kiwanuka, duas vozes irrepreensíveis, dois músicos de uma simplicidade desarmante. Jordan Mackampa beneficiou do som cristalino do Tivoli, sozinho em palco acompanhado apenas da sua guitarra eléctrica e da sua humanidade. O britânico nascido no Congo cantou temas de amor (nada “cheesy” ao contrário de como se assumiu), cantou temas sobre diferenças e em como sermos melhores seres humanos, num momento especialmente emotivo em “Foreigner”, em que partilhou a sua história de emigrante (a história de tantos), as dores de ser criança num país estranho e a riqueza de ser adulto com tantas culturas numa pessoa só. A nós roubou-nos o coração, esperemos que nos o devolva em breve num regresso seu.

Michael Kiwanuka era o nome mais esperado de ontem e o Coliseu encheu até às galerias para receber o britânico e a sua excelente banda e coros. Sem artifícios ou malabarismos, o músico é a definição de todos os artistas que deixam que apenas a sua música fale por si, talvez por isso surpreenda em como foi capaz de reunir tamanha base de fãs, tão sólida e diversificada. Para tal contribuíram, claro, temas como o sucesso televisivo de “Cold Little Heart” ou a intemporal “Home Again”, que alguns anos depois nem os milhares de reproduções conseguiram cansar e que ontem todos quiseram registar no mar de telemóveis que se ergueram aos primeiros acordes. Mas no final, quer-nos parecer que para Michael Kiwanuka nada disso importa, o seu sucesso vem de um sítio mais essencial, aquele lugar capaz de nos convencer que é da simplicidade de onde nascem as coisas mais belas.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

Vera Brito

Partilha com os teus amigos