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Na música popular, há quem seja vendedor de banha da cobra e quem crie o seu próprio género e sonoridade – no latíssimo género da música “experimental”, isto é mais do que evidente. Dylan Carlson pegou numa guitarra e desenvolveu o que maiorais como Alice Coltrane ou Glenn Branca (entre tantos outros) haviam começado: extensão de notas e acordes até ao limite, até ver o alcance do ouvido; por seu turno, Kevin Martin pegou no jamaicano dub, levou-o para a fábrica e dali saiu um portento com linhas de baixo de Kingston e o ruído de Berlim.
Na semana passada, passaram por Lisboa e por Braga para apresentarem, entre outras experiências, Concrete Desert, álbum colaborativo de pura mescla das respectivas obras. Sombrio, vigoroso na ideia de transformar a guitarra de Dylan Carlson num rolo compressor e a produção de Martin num retrato do deserto californiano e do substrato de violência e falsidade que é, para Martin, Hollywood e boa parte de Los Angeles.
PA devidamente aquecido com os Sleep, banda que também trilhou um caminho idiossincrático e que em nada fica a dever em termos de peso sonoro aos senhores da noite. O troar começaria pelas 22h45, não sem antes um Carlson pedir menos fumo em palco, que o instrumento de trabalho encordoado precisa de ser bem visto, a saúde assim o dita e porque daquela névoa não viria o receptor de certa caçadeira comprada em 1994.
Há momentos de completo noise, uma simulação do sismo de Northridge (o LNEC a mudar-se para o Cais do Sodré), na mais completa deformação que testa a estrutura do arco do MusicBox – aproveita, juventude, que disto não se ouve (e sente) todos os dias. O espírito de King Tubby vagueia pelas matas do estado de Washington, numa chuvada de distorção.
Seguindo-se fielmente o historial de colaboração entre Martin e Carlson (que data de Boa/Cold, de 2014, também na Ninja Tune), duas certezas: primeiro, a de que o mais recente registo é um dos melhores álbuns de 2017 e, segundo, que pouco ou nada de semelhante se fez na música popular nos últimos anos; nada bate o rasgo criativo que nos ponha as articulações a oscilar desta maneira – idade à parte, claro.
A atmosfera é lúgubre, quiçá uma tradução musical da paranóia sentida por Hunter S. Thompson (ou Raoul Duke…) e Oscar Zeta Acosta nas suas deambulações pelo deserto a caminho de Las Vegas ou de actos macabros lá para os montes à volta de Barstow. A distorção selvagem mas igual e paradoxalmente clínica na execução do duo é a areia e a aspereza das linhas de baixo e das batidas de The Bug são um escorpião sónico.
Neste deserto não há ar limpo nem paisagens a perder de vista, só claustrofobia (ou Agoraphobia, como bem se ouviu) e ares tóxicos trazidos da cidade. E por ares tóxicos entenda-se a tensão racial e o smog, que bem que atiram qualquer deslumbramento para uma cova no deserto, servindo o dub de The Bug de marcha e cada acorde (com ou sem palhetas de Carlson no chão) uma bicada de um abutre – nesta Death Valley não há ouro, só mesmo enxofre.
Na dicotomia álbuns/concerto, a brutalidade amplifica-se (piada não intencional) e assiste-se a um jogo da corda entre a dupla: umas vezes é a guitarra a esculpir as canções, noutras a central de produção a puxar o monstro. Exemplo disso é o delírio ácido de Snakes Vs Rats, um autêntico duelo entre Carlson e Martin e respectivas escolas: um maneja a escala, oscilando o nosso equilíbrio sensorial e o outro evoca um Lee Scratch Perry ou o Mad Professor, impelindo-nos os ombros, o pescoço e a cabeça a acompanhar o ritmo. Um candomblé da era digital.
Reflectindo sobre o que se viu no palco do MusicBox, talvez se possa avançar para a definição de um novo género: o dronepacito, um dark reggaeton como aquele de Gasoline. Na praia do barulho, são dois surfistas de ondas gigantes que controlam o mar que nem um Neptuno e Poseidon.
Num trio de dias em que meio mundo veio a Lisboa engatar, fazer networkin-, cunhas e ultrajar parte dos mortos ilustres da Pátria, haja visitantes que têm o bom senso de mostrar o que de melhor têm, em vez de termos de levar com propaganda oca sobre um futuro vazio (robots, a mesma lengalenga de sempre do Stephen Hawking e o mundo novo do trabalho informal nos direitos e formal na intromissão na vida privada). Se o mundo passou todo por cá, quem viu Dylan Carlson e The Bug apanhou um voo num jacto avassalador, que descolou em Seattle, fez escala em Kingston, Londres e Berlim e aterrou em Lisboa, terminando o combustível em Braga.
Numa cidade que, passe o chavão, tanto absorveu ao longo dos séculos, ouviu-se e sentiu-se uma fabulosa e poderosa miscigenação de duas escolas improváveis. Mas não acreditem na dupla quando esta toca Don’t Walk These Streets, que melhor caminho não houve a 9 de Novembro de 2017, pelas agora sempre luzidias ruas do Cais do Sodré.