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Três décadas volvidas, parece que os anos oitenta ainda pairam sobre nós: na Casa Branca outro idiota de penteado ridículo que gosta de falar sobre muros (um para deitar abaixo, outro para erguer), em Downing Street uma sujeita medíocre que mal sabe o que anda a fazer (ao contrário da de oitentas), a ameaça da guerra nuclear em voga, amores informáticos (de Kraftwerk a aplicações de engate), por cá continuam a imperar o cinzentismo e a parolice pseudo-cosmopolita; juntem-se-lhes sintetizadores, cores garridas e séries com sequências filmadas no Gambrinus. Croquetes à parte, o Top Jackpot de 2018 é o Spotify e o elo de ligação inter-décadas da noite foram os The Jesus and Mary Chain.
Com tanta categorização, os melómanos de hoje trocam listas de reprodução como em 1985 se trocava cassetes ou vinil. Se a t-shirt de Joy Division era outrora meio caminho para a exclusão social, hoje em dia é passeada com orgulho no concerto de uma banda “do nosso tempo”.
A banda dos manos Reid, antes perita em partir narizes à guitarrada e ouvidos à barulheira, deixou uma discografia ímpar e umas quantas tentativas de fratricídio. Como tantas grandes bandas ao longo da História, os manos e demais comparsas de ocasião (leia-se de disco e de digressão), demonstraram sempre não querer saber das convenções e olharam os dogmáticos com desdém. Só assim é que se vai basear o início de uma canção (na qual a guitarra arranha os ouvidos) às Ronettes.
Numa segunda-feira em que se cumpriam noventa e dois anos do 28 de Maio e cuja meteorologia mais fazia lembrar East Kilbride (ou o Portugal em muito cinzento de ’85), os manos que ajudaram a lançar uma catrefada de bandas voltaram a visitar Lisboa, o que não faziam desde 2015, na digressão dos trinta anos de Psychocandy (Blanco y Negro, 1985), sua obra maior. Como é óbvio, é uma noite de nostalgia para muitos, noite de exibir farpela que, mercê de compromissos profissionais ou de adequação ao habitat profissional, fica no roupeiro; contámos, em poucas horas de Coliseu, onze t-shirts de Joy Division, referências ao amor de Deus pelos Stooges (leia-se amor entre Deuses), sobretudos de cabedal e muito cosplay de candidatas a noivas do Billy Idol ou a gémeas da Siouxsie Sioux. E muitos pares de Ray-Bans.
Os The Jesus and Mary Chain não gostam mesmo de nos deixar totalmente confortáveis, começando a lide com Amputation, de Damage and Joy (Artificial Plastic, 2017), primeiro álbum de originais pós-separação. Cedo se percebeu a utilidade dos Ray-Ban: arreio de luzes estroboscópicas em tandem com o volume (não tão alto quanto deveria, mas se calhar são ordens do otorrinolaringologista).
Por entre os veteranos que já os tinham visto em mil-nove-e-troca-o-passo, os que foram pelo currículo e os bravos do costume, veio a euforia com April Skies (e nem sequer é Abril). O Coliseu transformou-se numa pista de dança de um Incógnito ou de um Metropolis, em sequência completada com Head On e Blues from a Gun, de Automatic (Blanco y Negro, 1989).
Jim Reid é como o treinador que chama a si a ribalta: figura esguia e em forma para quem já vai na quinta década de vida (William na sexta), ondula como se fosse um Peter Murphy escondido pelo simbiótico jogo de luzes. Também a voz pouco mudou – tendo em conta o que se diz dos concertos de há dez anos da banda, não haja dúvidas de que estamos perante uma fénix da distorção e do noise, redimida de manias, birras e má execução.
O alinhamento percorria a história da banda (faltou You Trip Me Up, contudo), voltando Damage and Joy à colação: uma Black and Blues sem Sky Ferreira, mas com outros Ferreiras na plateia, presume-se. De 2018 para 1992 com um pulo a Far Gone and Out (de Honey’s Dead; Blanco y Negro, 1992), ou aquele momento na carreira dos Jesus and Mary Chain em que foram criadores de tendências pela última vez: ouvindo a malha em estúdio e ao vivo percebe-se que muito manjerico da britpop ali foi beber inspiração.
A malta das noites de eighties voltou a desenferrujar as ancas (a própria letra o ordena, de resto): aí veio Between Planets. Se até aqui tivemos uma execução que oscilou entre o fiel ao estúdio e o nada-como-aquele-músculo-ao-vivo, Snakedriver foi outra que se superou. William Reid, o magnífico artesão e iconoclasta continuava a assegurar, a partir das sombras e da sua central de noise que por detrás de um grande vocalista há sempre um grande feitor de sons – ou, no caso, de barulho fofo, de nuvens ora abrasivas ora para conchinha com uma Scarlett qualquer.
Se os The Jesus and Mary Chain se fartaram de violar, ao longo dos anos, a Bíblia das convenções da música popular, as normas do trato social e de engolir tudo o que fosse drogaria, também é certo que foram teólogos dos pecados mortais. Estando em comunhão com o Santo que dá nome à rua do Coliseu, a banda leu-nos dois salmos das suas escrituras sobre a Luxúria: Teenage Lust e Cherry Came Too. Santo Antão é capaz de ter ficado tentado a comprar um caneco ali na banca de merchandise.
Aqui chegados, assistimos a um concerto de qualidade numa casa bem composta, com praticamente tudo o que é da praxe dos The Jesus and Mary Chain; sobrava apenas uma vontade de levar o ruído a outro nível, porém. Jim Reid pouco fala, salvo umas tentativas de saudar o público em português e de notar que até crianças estão nas grades (adormecidas ou mortas, comenta), aye. All Things Pass é um retrato da própria mortalidade da banda (consta que já nem bebem, os meninos) – pelo que vemos, a sua relevância não morrerá tão cedo.
A execução sem mácula acabou com o prego no início de Some Candy Talking. Que bem que aquele soube, que nesta intemporal canção levantou-se uma maravilhosa onda de noise que fez estremecer todo o Coliseu; vinte e quatro anos depois das últimas obras, talvez o estuque precise de um remendo. I’m going down to the place tonight, to see if I can get a taste tonight, a taste of something warm and sweet, that shivers your bones and rises to your heat – nada mais acertado, manos Reid.
Também fomos às Darklands, que nos deixaram as almas caóticas. Se Reverence já era uma das melhores canções da banda, por cá foi uma destruição de tudo e um par de botas; o ritmo emprestado (ou influenciado?) a Madchester, a guitarra do fuzz que dá um salto à Ann Arbor dos Stooges e à sua I Wanna Be Your Dog (ou não gostasse Jesus, o Cristo, deles) e a uma letra que bem poderia ter sido escrita por Hunter S. Thompson, coadjuvado por um orangotango igualmente bêbado – com uma cruz e uma Carcano ao lado.
No encore foi-se a Tóquio provar Just Like Honey, com direito a vocalista auxiliar; bo tem mel e um brinquedo de plástico. Faltaram um Bill Murray a segredar-nos piadas e um Bobby Gillespie armado em Moe Tucker. A última carga de iconoclastia dos Reid deu-se com I Hate Rock’n’Roll, língua de fora à indústria musical que acabou com a primeira existência da banda e com a noite.
De desastre em palco para ageless wonders, de iconoclastas noise pop (como os camaradas da compilação C86 ou a fritaria dos Spacemen 3) para banda influente do shoegaze, não importa que os The Jesus and Mary Chain não falem lá grande português, porque toda a gente se entendeu bem nessa língua universal do noise, da surfada pela grande onda de ruído fofinho. Porque a Fé neste Jesus e nesta Maria assim o ditam.