Reportagem


TRC Zigurfest

Aumento de pulsação

Lamego


Lamego, cidade de mil encantos. Todos os motivos são bons para re(visitar) este encanto duriense, desde a rica gastronomia à beleza natural e arquitetónica,  passando pelas enraizadas tradições e ao seu calor humano. No entanto, para muitos é também uma ansiosa espera pelo Zigurfest, ano após ano. A sétima edição deste festival, cada vez mais consagrado pelo país, alastra-se pelas principais artérias da cidade, aumentando-lhe a pulsação e conquistando uma maior dimensão de público, de espaço e de tempo.

No dia zero, as nuvens pintam o céu cinzento em pleno Agosto. O primeiro palco é uma viagem ao Museu, homenageando o seu centenário. Primeira Dama espera-nos no átrio e dá-nos a mão pelo seu pop romântico de embalar. O domínio das teclas “sintetiza” o seu carisma peculiar de poeta naïf. E a chuva não tarda a abençoar a tarde como um íman para uma sala da casa-mãe do festival, o Teatro Ribeiro Conceição. A alto e bom som, Talea Jacta acordam a cidade, os riffs da guitarra experiente de Pestana e a sábia bateria de João Pais, levam-nos a viajar no krautrock. A sala responde num subtil headbanging em sincronia. Os “dados estavam lançados” e uma voz de anjo indie leva-nos a descobrir mais um ponto da cidade, o Museu Diocesano. Sallim traz na bagagem um eco dreamy melodioso numa voz lusa.

Depois de recuperadas as energias, sob um céu estrelado, a magia faz-se sentir numa capela. Luca Argel, cantautor de samba e poeta talentoso, deixa-nos a pele arrepiada e a alma quente, apaixonando no seu compasso de violão que preenchia a acústica de um espaço único. Ao longo do concerto, com os sentidos aguçados, a beleza rica da Capela contrasta com a sua genuinidade carioca.

Quinta é dia de voar mais longe. Por ruelas estreitas cravadas de história(s), subimos ao Castelo numa Alameda sobre a cidade. A cadência do smooth folk de Coelho Radioativo deixa-nos numa introspeção melancólica e contemplativa. É tempo de parar, refletir, de “perder o juízo” e nos deixar guiar pelo seu enlevo. Nos degraus, deitados na relva, com um fino na mão, juntam-se histórias e cruzam-se caminhos. De raízes lamecenses, Pedro Eira partilha o seu recente projeto LYFE no último sunset de Agosto. Fluindo pelo seu estilo lo-fi, é um autêntico beatmaker que ondula pelo hip-hop, jazz e rap, um puzzle de sonoridades. A tarde chega ao fim pelas mãos Nils Meisel, designer de som de descendência Luso-Germânica, que constrói um labirinto de eletrónica experimental e um minimal drone hipnotizante.

À noite, a Alameda é outra e inaugura-se um novo palco em comunhão com a natureza, de socalcos graníticos e árvores múltiplas. Madrasta enfeitiça. É post-rock, é ambiental, é outra faceta de Molarinho (prata da casa e colecionador de atuações em Lamego), é também o Hélio e o Paulo, e é o público a baloiçar. A rasgar, o rock n’ roll de The Twisted Connection faz mexer o corpo todo e o mundo salta, abana a cabeça e fica boquiaberto com tamanha energia eletrizante. Depois de arrefecidos, o último mergulho é com as baleias (Whales), emergindo na boa onda indie. Para quem quis continuar a romaria, nada melhor que um rally a todas as tasquinhas lamecenses para dar a boa nova a Setembro, mês da padroeira da cidade.

Na tarde de sexta, o lanche traz uma mão cheia de P A L M I E R S, saboreando o groove do baixo, a musicalidade é repleta de psicadelismo com pinceladas jazzísticas. Fechamos os olhos e estamos numa savana, num safari de ritmos que nos deixa o coração em loop. E concordamos, o “Zigurfest está do caraças!”. A Olaria é indubitavelmente um lugar mágico, os vizinhos à espreita das janelas, as luzinhas, a bôla a entrar pelos olhos e a festa. Seguindo a corrente, descemos a rua e entramos num estado de transe alucinogénio com Acid Acid no Castelinho. Segue-se uma subida árdua mas valiosa, pelo caminho temos um miradouro pela cidade e umas quantas janelas icónicas. David apresenta-nos Maria, o flow de hip-hop e house é sentido por todos das 3 às 70 primaveras.

O Zigurfest teve também espaço para abraçar a Arte Contemporânea. Visionada por João Pedro Fonseca, a plataforma ZONA dá a oportunidade, nos moldes de residência artística, de sentir a cidade, fazer parte dela e apresentar o produto da criação. Desde a arte plástica à multimédia, os artistas Tatiana Marta Silva e a Cooperativa Ladra expuseram na Casa do Artista, dentro das muralhas do Castelo. Já no Teatro, João Pedro Fonseca explorou-se até ao “Osso”, mostrando-nos de que é feito. Em paralelo, nial e LYFE guiaram workshops musicais como estímulo à criatividade. No decorrer do festival, ainda nos convidam a explorar a Cisterna e Torre do Castelo, o Museu de Lamego e os Claustros da Sé, onde Daily Misconceptions, José Miguel, Vitor B e nial construíram as instalações sonoras que dão vida a “O som e o Espaço”. Cada festivaleiro, ao longo dos dias, acaba por delinear a sua própria viagem.

O templo do Zigurfest é um dos teatros mais belos que se podem encontrar. Mantendo a sua fachada setecentista e o estilo do século XX, é na verdade onde passa a vanguarda e os principais artistas emergentes do país. A noite caiu com a progressão do ritmo de Live Low, que acompanha a escada em caracol iluminada num palco nu e cru. Perdemo-nos no tempo, numa fluidez que gota a gota ecoa, que trava cantares populares numa nova roupagem, deambulando entre o noise. Surpreendente, “lembra-me um sonho lindo”. Segue-se algo completamente distinto, exótico, fresco, Nice Weather for Ducks, com as vozes em sintonia, dançam pelo palco, numa quase oração ao Verão. E o serão ainda reserva surpresas, Joana Gama, Jacinto e Fernandes reencarnam um Satie contemporâneo, com Harmonies. A desconstrução dos instrumentos numa performance riquíssima sem limites em que piano, violoncelo contracenam com produções espaciais.

Galgo(amos) à velocidade da luz, a festa dos Oeirenses já vai a meio quando chegamos. A boa energia é evidente entre todos. Ainda uivamos tribalescos em Skela à boa moda “Goatiana”. Stone Dead entram a “partir tudo” e a resposta não podia ser melhor, a Olaria estremece ao furacão do rock. Rapidamente, voam cabeças e estamos descalços, sem camisola e com algumas nódoas negras, num mosh bem regado de “Icetaço”, bebida oficial (e bem potente!) do festival. A noite encerrou em suspense com BLEID. Escondida numa máscara espelhada, incendeia o palco Castelinho num jogo de techno e drone.

No último dia, é quando se sente como o tempo voa. A primeira banda a ecoar na Olaria, THE NANCY SPUNGEN X, brinda um saxofone vivaz que salienta as jugulares, cortado com burlescas deixas cinematográficas. Como uma paródia de surf rock, jazz e punk de fazer lembrar The Cramps. Dança-se de braços no ar. Moloch encarnam verdadeiros demónios que “assustam” com o seu autointitulado deserto “psychadelic punk post-hardcore extravaganza” e poesia mordaz que imediatamente remete (e bem) para Burgueses Famintos, ou não fosse a mesma voz, João Silveira. Despedimo-nos da Alameda do Castelo, com melodioso e quase onírico lAmA que nos traz a nostalgia bucólica. De olhos fechados, por entre cafunés e momentos amorosos, seguimos a magia das teclas do João, embalados no ambiente.

E como Calcutá não se pode juntar à festa, o barcelense e ex-Kafka, Filipe Miranda, dedilha um concerto que deixa a plateia enternecida. The Partison Seed é um passeio a meia-luz, lírico e comovente. Entre concertos, somam-se magotes nas escadas do Teatro que debatem o que têm visto e criam espectativas. O número três é a perfeição, a unidade divina, assim, descidos do céu, o triângulo de The Rite of Trio caminha do jazz, trilhando o rock, embebendo-nos num mix de cortar a respiração com uma progressão que dá espaço e oscila entre géneros e forças. Pelo meio, saúdam os Zigur, “bando de amigos que há 7 anos tiveram o desplante de fazer uma coisa destas! Que festival hein?!”. O teatro, quase repleto, aclama em pé esta revolução sonora. As cortinas fecham com Alek Rein, de calcinha branca e cabelo despenteado, com uma voz folk aproximada a Dylan e psicadelismos a Syd.

Sob a mística lua, mal se vê a calçada numa rua imersa de um mar de gente com ânsia de festa. Pega Monstro abrem as hostes, mas semi-“pegaram”. Um concerto shoegaze e post-punk que deixa o público dividido, as manas apaixonam uns e deixam outros tantos confusos. “O concerto” do festival é inquestionavelmente o do angolano Chalo Correia, com uma mão cheia de ritmos e cantares. A euforia invade de dança todos, sem exceção, em rodopios e calores de África. Inundados de semba, a atmosfera energética vem vingar o vanguardismo da cultura crioula e deixar uma marca na rua e no coração das gentes. Faz-se história. Na derradeira despedida, Gpu Panic metamorfoseia-se num “animal” do palco que rasga texturas eletrónicas, “salta” para a mesa e colunas (literalmente!) e não deixa a chama da noite apagar. Um adeus a fazer jus à grande locomotiva Zigur.  O after são as pessoas unidas a partilhar histórias e emoções, a saborear traços de bôla e umas fatias de queijo num ébrio e infinito estado de contentamento. E, convictamente, grita-se de coração cheio: até pr’ó ano, Zigurfest!

Texto de Maria Pires Cameira

Galeria


(Fotos por Joana Raposo Gomes e Rafael Farias)

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Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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