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Quando se anda nisto dos concertos há décadas, de vez em quando acha-se, com certa acidez e cinismo, que já se viu praticamente tudo. No entanto, lá aparece um nome em cartaz que cria uma expectativa tão grande que não há como assinalar no calendário e esperar pelo dia. Foi exactamente isso que se passou com o concerto dos Turnstile nesta edição do Vodafone Paredes de Coura.
Se na noite anterior com os Idles a tensão era palpável no ar, com a banda de Baltimore o sentido era diferente: a enchente não era tão grande antes de o concerto começar e muita gente não fazia grande ideia do que se iria passar, salvo que “aquilo até era para moshar e tal”, segundo um anónimo ao nosso lado. Mas, mal apareceu lá no fundo a projecção da capa do excepcional GLOW ON, editado no ano passado pela Roadrunner, a ovação foi grande na mesma.
Cada toque no prato de ritmo na intro de Mystery, cada acorde, cada salto em aquecimento do vocalista Brendan Yates antevia que vinha aí um leviatã, um contrato de atitude mental positiva (a P.M.A., esse conceito de Napoleon Hill tornado bastião do hardcore) entre os Turnstile e o público. Algo refrescante na banda é não se cingirem ou não usarem slogans típicos do hardcore até à exaustão, preferindo incorporar as ideias além-acordes singelamente nas letras e na imagem da banda – vide a T.L.C. ou Turnstile Love Connection (mais sobre isto daqui a nada).
Esta é reveladora da vontade de fugir aos lugares-comuns do hardcore e à mentalidade de machezas tóxicas (para não dizer de imbecilidades à Tarzan do quinto esquerdo) do género, bem como dos “primos” crossover thrash e metalcore. Os Turnstile foram mais longe e pegaram em samples e sintetizadores para fazerem um álbum que rasgou de alto a baixo as convenções do hardcore. E isto tem-lhes valido passar de salas pequenas em Alvalade (a estreia em Portugal, em 2015) para o palco principal de Coura.
Raios partam se logo à primeira, na aludida Mystery, por pouco o anfiteatro não era aplanado pela descarga de milhares aos saltos e a moshar furiosamente, numa escala raramente vista em onze idas a Coura. E em palco? Yates, o baixista Franz Lyons e um dos guitarristas, Pat McCrory, rodopiam palco fora, dominados pelo momento.
Não havia ali mistério nenhum; com a junção de duas forças da natureza o resultado só podia ser um concerto que ao fim de algumas canções já era o campeão do festival. E todos, todos com um sorriso enorme em Big Smile – só disfarçado pelas máscaras contra o pó que muitos usavam (caso deste escriba).
As contraposições de GLOW ON são sinónimo de carne toda no assador; Blackout foi um turbilhão e Underwater Boi uma espécie de crossover jangle, com uma quebra pop que deixa qualquer ignorante, perdão, purista, à beira de um ataque de nervos. Sendo música (agressiva) de guitarras, o poderio dos Turnstile tem uma pedra basilar: o excelente tom de guitarra de Greg Cerwonka (substituto de Brady Ebert), que replica com fidelidade a mistura de estúdio. A banda soa lindamente e isso é meio caminho andado.
Destaque também para o trabalho de Daniel Fang na bateria, autêntica casa das máquinas a lidar com as mudanças bruscas de tempo ou com ritmos que fogem à regra no hardcore, caso de Don’t Play. Como prémio de parte a parte, houve lugar a solo de bateria, arrancado a gosto. E em gostosa ebulição andava Franz Lyons a puxar pelo público, convicto e imerso num dos grandes episódios da lenda da banda – para além do ar da sua graça que deu em No Surprise, interlúdio de de quarenta e cinco segundos de loops pop.
Como a obra da banda de Baltimore não se esgota no mais recente registo, houve tempo para umas brilhantes Come Back For More (voltava-se, na boa), Fazed Out e Drop, trio reminiscente de outras eras e outras cenas, como a NYHC dos Gorilla Biscuits, dos Youth of Today e dos Judge, com umas quebras jeitosas para que, de da esquerda para a direita da plateia (!), se dançasse/esmagasse (riscar o que não interessa) um corridinho contemporâneo. Sobrou também gente para o fosso, provinda do crowdsurf; tantos eram que a zona ficou transformada em IC-Coura, com o mote dado em Fly Again ou Alien Love Call, aqui sem Devonté Hynes de Blood Orange, mas com muita alma.
Um tema querido (e rentável) da música popular é o das aventuras de Verão. E Holiday é um hino sobre ter tempo para si mesmo e através disso curar as aflições do espírito, com letra condizente com o pandemónio do concerto: “[…] Make a little room, I wanna free up from the vine, I wanna celebrate […]”. E todo este dia de festival e o concerto dos Turnstile em particular foram uma celebração: do regresso ao convívio com música aos berros, com os amigos, a uma vila que sabe acolher e com a mística de quase trinta anos de certame. Coração a transbordar.
Brendan Yates, que passou o tempo a ser um Baryshnikov dos dois tempos e um trovador de uma corte caótica de vinte mil pessoas, revela uma t-shirt onde se lê “thank you”. Não haja dúvidas, com tanta onda positiva e, por parte do próprio, tanto agradecimento e desejo de que o amor e a amizade sejam os valores dominantes de quem ali esteja, os Turnstile são os anti-Cioran – está-se num cume de felicidade e não num cume do desespero, com todo o respeito para com o mestre romeno.
Era hora de ir embora, não sem antes de “abanar este sítio com amor, de um lado ao outro, à frente e lá atrás”, segundo Yates. Com T.L.C. (Turnstile Love Connection) perdemos toda a objectividade (e, por instantes, a caneta) e abrimos um pequeno pit. Na letra, os Turnstile agradecem-nos por se verem a si próprios e nós agradecemos à banda por ter sido o espelho da energia do público.
Lyons atira todas as águas de palco para o público, guitarristas atiram palhetas e alinhamentos e o baterista baquetas, no derradeiro gesto de agradecimento e simbiose da noite. Foi para isto que se inventou a música ao vivo. Medalha de ouro do festival e um murro em quem maldiz os cartazes de hoje em dia.
Depois desta noite de 18 de Agosto de 2022, T.L.C. mudou de significado para sempre: Turnstile Loves Coura.