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Chegados ao segundo dia do Vodafone Mexefest vimos o Coliseu a transbordar de emoção, num daqueles concertos que iremos guardar para memórias futuras e que até o céu comoveu desfazendo-se na chuva que na noite anterior nos tinha sido poupada. Com o coração na boca uma plateia febril exultou por “rainha”, “poderosa”, “diva”, “maravilhosa”, “deusa”, palavras tão grandiosas mas tão insuficientes para descrever “A Mulher Do Fim Do Mundo” Elza Soares.
Rodeada de uma talentosa banda de “moleques paulistas”, devidamente apresentada nos longos créditos pela voz off antes do pano subir, Elza aparece-nos no alto do seu trono imperial, com uma opulenta cabeleira púrpura, a cor reservada à nobreza, num longo vestido negro que se derrama pelo palco, um cenário só por si imponente. Mas o primeiro arrepio chega com “Coração de Mar”, o pilar que dá início ao álbum A Mulher Do Fim Do Mundo, que trouxe Elza de volta às bocas do mundo e que nesta noite se materializa diante de nós. Um poema sofrido mas inabalável, como quase todas as suas letras, porque embora a tragédia tenha atravessado demasiadas vezes os seus quase 80 anos de vida, Elza nunca perdeu o “seu gingado de nega” na luta que deu a todas as suas tormentas. O seu samba tem alegria na batida, mas as suas letras expiam a dor “na avenida deixei lá a pele preta e a minha voz, a minha fala, minha opinião, a minha casa, minha solidão”. O seu funk animado é um protesto das muitas injustiças sociais que sempre defendeu “você vai-se arrepender de levantar a mão pra mim”, a frase que a plateia “altamente fixe” do Coliseu gritou em uníssono e que esperamos que vá além da euforia. O racismo também não encontrou perdão e o tom de pele não poupou ninguém da dureza das palavras “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Temas dolorosos expiados em festa, alegria e muito optimismo num futuro onde o preconceito e a injustiça não terão lugar, e não somos nós quem o diz, é ela que se despede com a certeza “isto é só o começo”, e não há como duvidar.
A noite começou bem mais calma com um concerto logo ali ao lado na Sociedade de Geografia de Lisboa, “uma sala de sonho” nas palavras de Meg Baird e talvez a mais encantadora, acrescentamos nós, de todos os espaços que o Mexefest nos proporcionou a visita. Da guitarra de Meg Baird saem melodias bucólicas, a sua voz imaculada silencia-nos, tímida e refugiada no seu longo cabelo loiro, poucas vezes se dirigiu a nós, mas quando o fez disse tudo “I think this is one of the ways we can take care of each other”. Esta ideia prende-nos o pensamento, o privilégio de assistir a um concerto de tão bonita comunhão numa liberdade que tomamos como garantida, mesmo quando à nossa volta o mundo que confiávamos conhecer começa a gritar sinais de alarme.
Seguimos para uma das revelações da noite, o norte americano Gallant. Uma verdadeira gazela e uma dor de cabeça para os fotógrafos. Durante uma hora de concerto percorreu mais quilómetros em palco, que nós no sobe e desce da avenida em dois dias de festival. Frenético e impossível de acompanhar, aos seus 24 anos é dono de uma voz invejável e de um domínio de falsetes surreal, que assume como imagem de marca. E até enquanto estamos hipnotizados pelos seus malabarismos vocais, surpreende-nos por vezes o seu bonito timbre grave sem artifícios. Gallant pode fazer o que bem entender com a sua voz que nunca lhe irá correr mal.
Quase a fechar este malogrado 2016 gostamos de fazer o exercício das listas de melhores álbuns e na minha, Singing Saw, é um dos discos que mais me chegou ao coração. E só isto justifica a corrida pela chuva na calçada traiçoeira até à Estação Ferroviária do Rossio, com algumas escorregadelas arriscadas que tiveram tudo para terminar em quedas épicas, para ver Kevin Morby, mesmo a tempo de “Dorothy”. Atrás de nós alguém ironiza o seu fato escuro e melena desgrenhada com um desdenhoso “parece um pastor”, mas perdoamos-lhe a piada quando percebemos que consegue acompanhar a hipnótica “Harlem River”. Kevin Morby dirigiu-nos poucas palavras, mas passou-nos a boa energia e cumplicidade entre a banda neste seu último concerto da digressão, e já ansiamos para que regresse rápido a uma sala da capital sem as margens de tempo ingratas dos festivais.
E foi na estação do Rossio que nos despedimos deste Mexefest com os Octa Push. Língua, o recente álbum dos irmãos Guichon é uma amálgama de ritmos africanos e urbanos, que conseguiu agitar a plateia neste final de noite, com a ajuda de Cátia Sá e Cachupa Psicadélica. Fugimos novamente à chuva levando connosco o remix de “Alegria” de Batida com que os Octa Push encerraram a actuação. Correrias, culturas distintas, espaços mágicos da capital, diferentes ritmos e muitas formas de viver a música, fazem do Vodafone Mexefest um festival à parte que a cada ano só tem por onde crescer.