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Último dia. Antes do recinto, é hora de repousar no rio, desfrutar dos petiscos bons e baratos do Leira de Cima (onde houve, no dia de abertura, um concerto secreto de Conan Osiris) e sentir que o eurodance é a minha vida com Gin Party Soundsystem, no Xapas Bar, outro dos clássicos do festival.
Entramos no recinto tarde, perto das 8 da noite, já depois de Keep Razors Sharp ou Myles Sanko. É noite de casa cheia e sente-se o desconforto: os espaços são pequenos e os encontrões são muitos. Sorte grande para Curtis Harding, que assim tem uma enchente para o ver. Do palco, vem algo entre a soul mais melosa e melancólica (como no recente single Ghost On You) e umas tonalidades mais funk, entre música para fazer amor e para abanar a anca. O músico norte-americano não tem um timbre possante e imponente, ao nível das grandes vozes negras, e resvala um pouco (só muito ligeiramente) para o easy-listening à John Legend. E não teve a melhor das sortes com o som, que começou bastante atabalhoado e que o terá feito repetir, no final, o êxito Keep On Shining (um belo tema, por sinal).
Stop. Convenhamos: ao último dia, a nossa paciência para coisas assim-assim já não é muita e não há nada de mal na música de Curtis Harding. Nem todos podem ser Marvin Gaye ou Charles Bradley. Harding não tem tanto talento, os discos dele não são estrondosos (ao contrário do que disse, em tom de gracejo), mas deu um concerto em crescendo, simpático e que acabou em tom de festa.
Já por aqui se leu que as ondas sonoras da chamada “música alternativa” (ou, pior, ainda do “indie”) têm andado preenchidas por artistas e bandas cuja temática parece ser a da angústia permanente – independentemente da idade, sexo ou género musical. Não sabemos se é bem assim, mas os Big Thief foram mais uma proposta que se apresentou nesses termos – em trio, dada a doença do guitarrista, Buck Meek.
Andando por aí a mostrar o magnífico Capacity (2017, Saddle Creek Records) , a banda de Adrianne Lenker encarna as melhores tradições do sadcore dos Low e dos Codeine, pintalgado por laivos de folk e muita, muita melancolia. Tolerável porque a banda é composta por artífices de canções acima da média; Adrianne aponta que nunca tinha tocado para tanta gente, pese embora que a maioria ali estivesse para não perder lugar para os Arcade Fire, que se danasse esta reencarnação do college rock e sadcore de noventas, completa com vestido e botas – e distorção que bem espelhou o espírito das canções.
Nem a baixa de um membro impediu os Big Thief de darem um dos grandes concertos do festival: a maturidade emocional e o existencialismo de Shark Smile (do melhor que há para ouvir na viagem de regresso a casa, podemos afiançar) ou Mythological Beauty (em cujo vídeo Adrianne aparece de aspecto andrógino, carregando em si um companheiro que pode ser o mundo) resultaram de uma beleza que marcará a edição. A voz de Lenker é de suavidade e doçura tais que, a espaços, o anfiteatro natural virou um quarto onde ela está ao canto a cantar-nos canções como Paul, um conto de amores intensos mas desencontrados.
Faltaram-lhe os óculos para ler os cartazes do público, mas ofereceu palhetas a espectadores e continuou a sua demanda pela verdade e pela distorção. O seu terno abraço à guitarra enquanto o amplificador (e o PA) jorravam distorção é “A” imagem da música dos Big Thief: o eterno confronto entre fragilidade e força (veja-se o magnífico refrão de Paul). De combates destes gostámos nós, ainda que não nos lembremos de quando nascemos, como indagou Adrianne.
Também há vestígios de melancolia no palco secundário, na música de Yasmine Hamdan. Mas são vestígios bem mais subliminares. A libanesa embrulha a claustrofobia das guitarras, uns sintetizadores arrojados e as linguagens do Médio Oriente. Fá-lo de tal modo que pensamos que poderia ser assim o trip-hop se não tivesse nascido em Bristol, mas a uns milhares de km de distância.
Pela dança sensual e pela forma como interage com os músicos, em particular com o baterista, tem uma presença irresistível em palco. Mais solta ainda do que a vimos em Lisboa e em Sines (outra ponte com o Festival de Músicas do Mundo, depois de Imarhan), Yasmin arrebata muitos dos que não a conheciam. Despedimo-nos dela antes do final, após a progressão hipnótica da extraordinária música de Only Lovers Left Alive (filme de Jim Jarmusch), rumo a um anfiteatro de Coura já completamente lotado.
Por via da anunciada actuação com Mark Lanegan, os Dead Combo deram quiçá o mais importante concerto de uma banda nacional nesta edição, por várias razões: i) a colaboração com Lanegan em Odeon Hotel; ii) o regresso a Coura depois vários anos de ausência; iii) a quantidade de público presente; iv) as condições de saúde de Pedro Gonçalves, um dos membros fundadores da banda. Não apenas pela sua exposição mediática internacional que data do tempo em que figuraram num episódio de No Reservations (2012) de Anthony Bourdain, mas também pela sua original e ímpar interpretação nacional da guitarra eléctrica, os Dead Combo demoraram algum tempo a arrancar reacções do público, mas quando o fizeram estava tudo conquistado.
Em 2018, a banda já não é apenas composta pelo “cangalheiro” Gonçalves e pelo “mafioso” Tó Trips, como em 2002/03; também Gui (Xutos), António Quintino e Alexandre Frazão (que nesta noite se tornou cinquentão e ofereceu solos de bateria de prenda) fazem parte do colectivo. O alinhamento não sofreu grandes alterações em relação ao costume: oscilou entre uma óptima Deus Me Dê Grana (nada a ver com o êxito dos Camisa de Vênus) e o desfilar de clássicos como Cuba 1970, era hora de Mark Lanegan entrar em palco.
Diga-se: das últimas vezes que o vimos (incluindo em Paredes de Coura), o norte-americano não foi mais do que certa modorra em palco, com grande desprimor para o seu excelente percurso. Se ajudado ou não por I Know, I Alone (poema de Fernando Pessoa) não sabemos, mas o tom abrasivo da colaboração deu outra roupagem ao concerto, que findou com uma grande e definitiva versão de Lisboa Mulata.
Deus nos dê grana e não nos leve Pedro Gonçalves, que não queremos perder um músico de excepção e a dicotomia estoicismo-emoção contida da dupla em palco. Que este não tenha sido o último concerto dos Dead Combo, que façam jus ao nome apenas tarde e a más horas e que nunca por vencidos se conheçam.
A dupla bracarense Ermo (António Costa e Bernardo Barbosa) sofreu com a debandada pós-Arcade Fire, mas apenas no horário de actuação, que público não faltou. Continua a apresentação de Lo-Fi Moda, álbum nacional superlativo de 2017; enredo de produção distante (e salto qualitativo) dos outros trabalhos da banda e de letras mais abstractas, é dos poucos álbuns onde o auto-tune bem figura.
Ao vivo a banda continua a ser competente, em todo o mistério das caras tapadas e do jogo de luzes condizente. Num festival cuja edição foi uma montra capaz da qualidade da actual música popular nacional, os Ermo deixaram boa réplica, lamentando-se apenas a opção artística e estratégica de não mais tocar material mais antigo – que saudades de ouvir uma Macau. Foi-se nadar ao mar que enterra, sem se ser cego e só.
Para culminar um palco Afterhours com propostas bem desastrosas, os Ninos du Brasil foram apresentados como uma dupla misteriosa (sabe-se que são italianos) que mistura electrónica e samba. Sim, são uma dupla de percussão desgovernada, em que a electrónica e os sons tribais estão presentes. E o samba? Enfim, tanto como nos Safri Duo.
Até para o ano, Paredes de Coura.
Textos de João Torgal e José V. Raposo