Reportagem


Vodafone Paredes de Coura

O primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura foi dedicado à prata da casa.

Praia Fluvial do Taboão

16/08/2022


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Terça-feira, 16 de Agosto de 2022. O dia do regresso tout court ao recinto de Paredes de Coura, ao “anfiteatro natural da música”, inserido no chamado Couraíso, ao fim de três anos de espera. Relva mais verde do que aquela não havia, suficientemente viçosa para levar com milhares de pessoas a deambular entre palcos, neste dia que foi exclusivamente dos portugueses: Linda Martini, Rita Vian, Samuel Úria, Mão Morta, Paraguaii e Conjunto Corona. Dada a quantidade de actuações previstas, estas seriam de duração relativamente curta, entre os trinta e os quarenta minutos, quase sem excepções.

 

Paraguaii

Dia esse que começou cedo, logo às 16:30h no palco Vodafone FM (doravante palco secundário) com os Paraguaii. O trio vimaranense, composto por Giliano Boucinha, Rolando Ferreira e Zé Pedro Caldas, centrou a actuação no material do excelente Propeller.

Não foi preciso muito para que o público (em número crescente) começasse a querer secar a roupa e os sapatos da chuva do dia ao dar réplica às batidas e à boa execução dos Paraguaii. Como Chilavert entre os postes e a bater livres, atreveram-se e foram aguerridos, tendo sido suficientemente competentes e soltos na actuação para que a meia hora a que tiveram direito fosse bom agoiro para o resto do(s) dia(s).

Tudo no ponto, no tocante a sintetizadores e demais execução da banda. O reparo a fazer é mesmo o de ficarem melhor a fechar o dia do que a abri-lo. Mas, com sorte, lá chegarão – porque mérito para tal já os Paraguaii têm.

 

Samuel Úria

 O adepto mais famoso do Clube Desportivo de Tondela (que nunca foi do prog rock, convém lembrar) tinha à sua frente uma plateia em bom número no palco Vodafone (ou principal) para mostrar uma passagem em revista do seu material mais sonante. Certeiro na ginga com que se passeava na beira do palco e nas suas observações entre canções – como aquela em que menciona que quando as suas composições mais antigas foram escritas 80% dos festivaleiros nem tinham nascido, lançou-se a destaques como É Preciso Que Eu Diminua ou Forasteiro, com indubitável entusiasmo, até porque a chuva regressou para ser aquele ingrediente especial num concerto courense, apelando Úria a que a plateia pusesse os seus guarda-chuvas no ar.

Ponto alto do concerto? A Contenção, de Canções do Pós-Guerra. Interpretação com mais sangue na guelra do que a de estúdio, cumprindo-se algumas colisões nos primeiros mosh pits desta edição. Mosh esse que é mesmo dura lex sed lex de Paredes de Coura. Nota bem positiva para este regresso de Samuel Úria a Coura – agora só lhe falta atender o telefone quando o Miguel Arsénio ligar.

 

Rita Vian 

A autora de CAOS’A (produção de Branko) estreou-se nos palcos minhotos (acompanhada por João Pimenta Gomes) com um estrondo discreto, por assim dizer. Integrada no que podemos chamar de pop introspectiva nacional, onde pontificam, para além de Rita Vian, nomes como Almirante Ramos e Pedro Mafama, demonstrou que as suas composições têm profundidade emocional e que dispensam grandes adereços, bastando um sample simples e a potência da sua voz para passar a sua mensagem.

Os fundos ora vermelho, ora azul nas projecções atestam o fundo emocional das canções, mas têm também o condão de fazerem com que nos concentremos apenas na música; Vian move-se com singeleza e simplicidade, não precisa de mais. Também não precisa de berreiro à fadista, que a crueza e beleza da sua voz chegam e sobram para sintetizar ideias sobre a vida e o amor.

Bem assim, há toda uma dignidade na sua actuação, quer quando explica que Sereia foi escrita no seu quarto, quer quando afirma quão bom é acreditarmos nas nossas ideias. Os ombros e pés dos presentes vão concordando com as ideias de Rita Vian. Não contente em ter todos rendidos à sua música, ajoelha-se quase à beira do palco e canta a cappella uma canção do tempo dos seus avós, que a cantavam em dueto.

Vian confessou ainda ter sido muito feliz em Coura, presumivelmente como espectadora, e lembrou que é bom estarmos de volta – mais concordância da parte do público, obviamente. Regresso a CAOS’A para HPA e seu intrigante verso de que há para aí uma versão alternativa da autora; havia gente ao nosso redor que conhecia a letra, algo que ajudou a aumentar o brilhantismo do concerto, encimado por uma versão de Carmencita de Amália Rodrigues. Se há comparações óbvias a fazer entre Rita Vian e o fado, este foi um exemplo cabal.

“De quem foi esta ideia louca de me chamar?”; só sabemos que foi uma excelente ideia chamar Rita Vian para o cartaz desta edição do festival.

 

 

Linda Martini

 Começava a noite a cair (ao contrário da chuva, titubeante) e os pesos-pesados começavam a invadir os palcos. Pelas vinte e trinta no palco principal era a vez de uns velhos amigos do festival, os Linda Martini, espalharem o fel e a descarga emocional que são a sua marca registada. Colmatada a saída de Pedro Geraldes com a entrada de Rui Carvalho, aliás Filho da Mãe, estava no ar a expectativa de como se sairia a banda de Lisboa nesta sua quinta passagem por Paredes de Coura.

Todos equipados de preto como se de um epitáfio da antiga encarnação da banda se tratasse, não perderam tempo na administração da jarda. Tratando-se de digressão de promoção do novo disco, ERRÔR, o arranque foi dado com Eu nem vi, portento de percussão e de dor que levou a muito sorriso embaciado.

Monumental versão de Boca de Sal, a denotar que a banda tem (cada vez mais) um poderio ao vivo que ultrapassa largamente as versões de estúdio; para tal contribui a guitarra mais abrasiva, mais noise, de Filho da Mãe. Se ali estávamos no material mais recente, os clássicos do grupo tiveram também direito a uma interpretação e tanto, como foi o caso de Amor Combate: a mesma entrega e a mesma força de sempre. Se o amor entre o público e os Linda Martini é um combate, então a parte ganhadora foi mesmo o público.

Público esse que estava para lá de eufórico com a saudação da baixista Cláudia Guerreiro, que nesta nova versão da banda (e em ERRÔR) divide as vozes com André Henriques, criando uma dinâmica que permite distinguir este concerto de todas as outras actuações da banda que vimos ao longo de (cerca de) dezassete anos e três delas em Coura. Como já se disse, a execução dos Linda Martini nesta fase é soberba, com Filho da Mãe perfeitamente entrosado (e a contribuir com algo) no som da banda ao vivo.

Dado o ocorrido em palco, fica-se com pena de a banda não ter mais tempo para tocar, mas o finalzinho com Cem Metros Sereia, com a torcida a berrar a plenos pulmões que foder é perto de te amar (novo aviso à navegação da depressão: é bem provável que muita gente que ali estava no berreiro nem sequer andasse na Primária quando Casa Ocupada saiu), e com Taxonomia, faixa de fecho de ERRÔR e de um show suadão, a terminar com um feedback de missão cumprida. Como disse o baterista Hélio Morais, “foram dois anos de merda mas agora estamos todos aqui.”

 

 

Mão Morta

Em dia de velhas glórias do festival não poderiam faltar os Mão Morta, banda de todos os encómios e rapapés e mais alguns. De tal modo prata da casa que estão no ADN do festival, desta vez deu-lhes na telha apresentar ali no anfiteatro natural que tão bem os conhece algo pré-pandemia: o disco No Fim Era o Frio, de 2019. Não houve lugar para “aquelas” malhas nem para outras mais obscuras que de vez em quando aparecem no alinhamento da banda de Braga com nervos em Lisboa e numa data de outras cidades (nem mesmo tratando-se do ano em que Mutantes S.21 chega aos trinta anos).

Tal não impediu que Adolfo Luxúria Canibal, Miguel Pedro e comparsas (agora sem Joana Longobardi, a baixista de longa data que foi substituída por Rui Leal) escrevessem mais uma página no Evangelho de Mão Morta aos Peixes do Coura. Se em 2019 as coisas já não andavam famosas (iam indo, como por cá se diz), em 2022 isto está tudo destrambelhado, mesmo a jeito para manter a relevância de No Fim Era o Frio: inflação, problemas ambientais, incêndios pelo País fora e, mesmo a calhar, uma guerra ali para os lados da Ucrânia (por outras palavras, uma pusilânime invasão russa). Com isto teve-se direito a uma O Mundo Não É Mais Um Lugar Seguro de estalo.

Não obstante a versatilidade do disco, cujos momentos oscilam entre os Radiohead de Kid A e o noise de uns Jesus Lizard, há coisas que nunca mudam nos Mão Morta (e ainda bem): a dança espasmódica de Deus Adolfo à la David Thomas de antigamente e o seu ora raivoso, ora sarcástico sprechgesang. Tudo isto em evidência nos cerca de cinquenta minutos de concerto.

Momento alto? A versão de A Minha Amada, que já se transformou no clássico do álbum, com o seu tom kraut e autêntica representação teatral por parte de Deus Adolfo. O desfiar de momentos de intimidade e amor, como o doce rosto da amada do narrador a olhar para este, ao seu corpo quente e aos cabelos que querem ser cheirados, e a consequente penetração no lugar aprazível daquela até que, pesadelo Lovecraftiano à vista, aquela se transformar num bicho alienígena que acaba por retribuir na mesma moeda, por assim dizer. Alucinação ou uma ressaca do caraças? Não sabemos, mas a mera imagem de Adolfo Luxúria Canibal a praticar o coito com uma coisa aparentada com um xenomorph já dá para muita conversa (com um terapeuta).

Da bestialidade intergaláctica para gritar que não queria mais brincadeira (Isto É Real?) e que tinha tanto frio (Sinto Tanto Frio) foi um tirinho para terminar o concerto. Vénia? Claro, mas não sem antes proceder a uma contundente proclamação, em triplicado porque Deus Adolfo estava um pouco duro de ouvido: “NÓS SOMOS OS CABRÕES DOS MÃO MORTA!!!!!”.

O Mundo pode já nem ser um lugar seguro, mas o Couraíso com os cabrões dos Mão Morta a actuar é um refúgio e pêras.

 

Prosseguiu a noite no palco Vodafone com Sam The Kid acompanhado dos Orelha Negra e de uma orquestra, mas a grandeza deste concerto exige texto próprio. A fechar a noite houve xinadas no olho, mafiezas bairro adentro e metamorfoses em gandim do Conjunto Corona, sem esquecer as loas ao Paços de Ferreira- Tottenham do ano passado, que teve por resultado uma vitória dos pacenses sobre os londrinos, estabelecendo a banda de Gaia que foi o melhor jogo de futebol que viram na vida.


sobre o autor

José V. Raposo

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