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No que outrora foi um dia de recepção ao campista (como então se designava), a quarta-feira de Coura transformou-se, nos últimos anos, num dia de festival como os outros – posição reforçada em 2022. Sobem aos palcos os primeiros nomes sonantes vindos do estrangeiro, mas houve também portugueses com uma palavra a dizer. O segundo dia do Vodafone Paredes de Coura foi um dia de guitarradas e de porrada, com a brigada do mosh a picar o ponto e a meter a quinta velocidade.
Gator, The Alligator
Os jacarés de Barcelos (Ricardo Tomé, Filipe Ferreira, Tiago Martins e Eduardo da Floresta), mercê da qualidade da sua obra e da mui boa presença de palco tornaram-se, por via de terem vindo a substituir à última da hora várias bandas de rock alternativo nacionais, numa espécie de Sexto Homem da NBA mas com guitarras. E que sexto homem seriam os Gator, The Alligator? Provavelmente Kevin McHale nos seus tempos de bater forte debaixo do cesto (e porque o verde dos Celtics é cor de jacaré).
Imaculados de branco a enganar uma tenda cheia com a sujidade do seu fuzz, reconheceram a honra e o sonho que é tocarem ali, mas não perderam tempo a malhar. São uma máquina bem oleada e que vai com tudo, sem medos e sem tretas.
Canções como Yayaya, com o seu riff incisivo e mudança de tempo a convidar à cabeçada, foram mais do que suficientes para constituírem um ponto alto do fim de tarde solarengo.
Final com novo ponto digno de recordação: um mashup envolvendo um momento Marquito (guitarrista de David Bruno) e uma reconstituição do que os Replacements fizeram da primeira vez que acabaram, em Chicago em 1991. Marquito passa a guitarrista enquanto outros membros da banda entregam os seus instrumentos e mergulham na massa humana. Um impossível afundanço de três pontos dos jacarés barcelenses, que tinham a lição bem estudada.
Porridge Radio
A banda inglesa estreou-se em Portugal e não deixou os créditos por mãos alheias. O seu som é um cruzamento de bandas da mítica compilação C86 (maxime os Shop Assistants), das Raincoats da “nossa” Ana da Silva e, por fim, com o post-punk já deste século dos Interpol – com letras pejadas de tensão emocional capaz de mandar ao chão o maior dos rufias.
Porém, não foi de mandar ao chão o público mas sim de o pôr a partir chão logo ao início com 7 Seconds, seguida de Give/Take, uma das melhores faixas das Porridge Radio, sobre um desejo amoroso avassalador que é sempre correspondido, mas também de como não parecer uma pessoa terrível no meio de tanto torvelinho. Ao fim de quatro canções, o encómio da praxe (que seria repetido bastantes vezes no festival): “é a nossa primeira vez em Portugal e é bem fixe.”
Como já se referiu, as Porridge Radio têm uma amplitude emocional considerável; se em Give/Take dominam o desejo e a perspectiva, em Birthday Party é o oposto, o de não se querer ser amado e de não se querer sentir dor por isso – tudo isto com uma execução admirável, um manifesto de se querer ser deixado em paz como se se fosse um J.D. Salinger. Comparação um tanto ou quanto forçada, mas a música das Porridge Radio poderia ter sido escrita por Holden Caulfield.
A voz de Dana Margolin é expressiva e lembra, a espaços, os momentos mais agudos de Robert Smith; conjuntamente com uma banda competente, confirma-se que a presença do grupo inglês no cartaz foi uma das boas novidades do festival. Com Long chegou-se à penúltima canção da actuação e o seu último ponto alto, cuja letra fez jus ao sentimento geral, mas a contrario sensu: o de que não gastámos o nosso tempo com Porridge Radio, bem pelo contrário.
BadBadNotGood
A banda canadiana é de grandiosa memória em Paredes de Coura, depois do gigante concerto de 2017, naquela que foi a sua estreia em Portugal. Depois de uma mudança de horário que antecipou a sua actuação, nada disso mais importaria, que a plateia era grande, comprovando que a aposta, por parte da organização, de ter jazz no recinto está mais do que ganha (e não se ficou por aqui), danem-se todos aqueles que peroram nas redes sociais que “Paredes agora só tem música para betinhos.”
Com Talk Memory (2021) para apresentar, os meninos bonitos do jazz de fusão resolveram dar todo o enfoque à música e às projecções em 16 mm de Sylvain Chaussée, não tendo quaisquer luzes de palco. Tal opção demonstra que a sombra é para os BadBadNotGood uma força e que a arte se deve sobrepôr a egos e que as expectativas devem ser (bem) subvertidas, como a entrada em palco ao som de War Pigs dos Black Sabbath.
Se o concerto de 2017 foi de novidade e de uma certa ansiedade em dar sarrabulho ao público, neste a banda de Toronto apresentou-se mais solta, com improvisos e jams mais longos, o que nem sempre resultou a favor – ainda que algumas tenham assentado que nem uma luva em todo o cenário. Contudo, Alexander Sowinski manteve-se como o centro de gravidade do ritmo e da sociabilidade de palco da banda, não mudando o timbre no entusiasmo com que apresenta as canções, os companheiros de banda e o projeccionista.
Noutras coisas que nunca mudam, Leland Whitty continua um virtuoso, quer no saxofone (“o” instrumento desta edição do festival), quer na guitarra. Nesta última, destaque para uma grande interpretação de Beside April, um jazz de fusão a piscar o olho ao prog rock, que em estúdio tem a participação do vulto Arthur Verocai. Este cosmopolitismo entra-nos por vários sentidos, que na tela de palco vemos imagens do cruzamento de Shibuya, em Tóquio; esperemos que um dia haja imagens da rampa e do rio Coura, cuja densidade de atravessamentos também deverá ser jeitosa.
Como banda que sabe sacar coelhos da cartola, numa incrível Lavender, Sowinski dá o mote e pede que as lanternas oferecidas pelo principal patrocinador do festival (que lhe lembram os pirilampos da zona onde vive) sejam erguidas, de modo a que se reconstitua o que chama de momento do caraças do concerto de 2017 (sempre bom quando as bandas que cá voltam têm memória e não se esquecem que não estamos em Espanha). Por outras palavras, os BadBadNotGood a pedirem para os festivaleiros imitarem os Slipknot e a Samba de Janeiro dos Bellini ao irem abaixo e saltarem e darem tudo no pogo quando o apogeu da canção vier. Esta coreografia de surra foi como os improvisos do grupo em palco: um sucesso.
Dado que esta edição foi para matar saudades de muita coisa e de muita gente, também os BadBadNotGood embarcaram na onda e terminaram um excelso concerto com Chocolate Conquistadors, composição editada a meias com MF DOOM (sempre em All Caps), referência fundamental para os canadianos. Que voltem sempre, com ou sem luzes.
The Murder Capital
Vezes na vida há em que, ao fim de segundos, já é possível tirar o retrato de uma pessoa ou situação – seja para o bem ou para o mal. Pois bem, quando o baixista dos irlandeses The Murder Capital começou a picar o público mal entrou em palco deu para ver que a coisa iria ser de arromba, isto é, de que era capaz de haver homicídio. Qualificado.
Estabelece o Código Penal Português no número 1 do seu artigo 132.º que “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos”. Ora, tendo em conta o concertão dos Murder Capital, praticado com avidez e por mais de duas pessoas (alíneas e) e h) do número 2 do aludido artigo 132.º), era mesmo para qualificar a conduta dos The Murder Capital.
Escusem-se as comparações com os Fontaines D.C.. Se o mundo destes vai de cacos no chão em Dublin até personagens abstractas, o universo dos Murder Capital é mais sujo, pessimista e, às vezes, tragicómico. For Everything é uma facada que deixa bandas como os Girl Band (agora lamentavelmente Gilla Band) a ver a concorrência por um canudo e que determina que os Murder Capital são muito mais do que uma mera banda de rock alternativo recente.
“I am the underworld, the one you want to leave, a frail democracy, benign treaty”, cospe James McGovern, vocalista equipado com óculos escuros e uma t-shirt de Iggy Pop (“É O IGGY POP, O IDIOTA!” – diz o limiano mais famoso do festival, tão famoso que até tem uma frase sua num banco de jardim no recinto), que olha de lado para o público, com todo o desprezo de um assassino em série para as vítimas. O jogo de luzes é inteiramente acertado: vermelho metafórico para todo o sangue derramado por este homicídio qualificado em cima de um palco.
E também o do pit que entretanto se formou, andando a brigada do mosh aos círculos em ATL ou em TSWLTS (títulos que seriam irritantes e pretensiosos noutras bandas aqui contribuem para o jogo da banda). McGovern vai sacando uns cigarros ao público e serpenteia em palco como o saudoso Malcolm Owen dos The Ruts, levando as mãos à cintura num gesto de marialva que tem perfeita consciência de que sabe pegar um touro complicado.
Contudo, como até um homicida precisa de recuperar o fôlego, somos brindados com o díptico Slowdance I e II. E, já perto do fim, por volta de Don’t Cling to Life, McGovern senta-se nas grades, acende mais um cigarro e assiste ao desenvolvimento instrumental da canção, sempre interpretada de peito feito pelos restantes membros dos Murder Capital – juntando-se-lhes de seguida.
Um concerto de topo desta edição, tocado por uns gajos que sabem que são bons e que não têm grande vergonha de o admitir ou, por outras palavras, um concerto tocado com dolo directo.
A seguir, não cabia um ovo nas imediações do palco principal para receber a estreia dos Idles em Paredes de Coura, mas esse concerto é merecedor de texto próprio.
Beach House
Depois de várias horas de massacre guitarreiro, os Beach House tomaram conta do palco principal. Vimo-los lá ao longe, às escuras, a querer fazer as pazes e corrigir o atraso e o concerto mal conseguido de 2017. Desta vez,
Objectivo mais ou menos conseguido pela banda de Baltimore, composta por Alex Scally, Victoria Legrand e por um baterista para digressões, James Barone, que está agora melhor apetrechada para tocar num palco de grandes dimensões. Só faltou um alinhamento que relembrasse mais os grandes tempos de Devotion e de Teen Dream (só Silver Soul não chega para encher o buraquinho do dente).
Ainda assim, Lazuli foi bem puxada, ecoando a voz de Victoria Legrand pelo recinto. Tudo isto numa escuridão como a dos BadBadNotGood umas horas antes, mas com contenção, até porque a dream pop da banda a isso obriga.
Saudação tímida de Legrand e um elogio de Scally, provavelmente genuíno, que uma banda de qualidade como os Beach House certamente se lembra (ou foi lembrada) do sucedido há meia década. Setlist a percorrer os últimos dez anos da banda, fechando com delicadeza o palco principal e mandando muita gente para a terra dos sonhos algures numa tenda.
Viagra Boys
Não sabemos se é da água ou do adubo lá na Suécia, mas as bandas do país escandinavo quando têm panca, têm mesmo panca a sério – sejam os Abba, os Hives ou os Viagra Boys. E se o primeiro nome nunca passou por Coura (infelizmente, piças para os haters), o segundo deu lá um grande concerto nos idos de 2009 e o terceiro veio fechar a noite do segundo dia de festival. E de que maneira, senhores.
A rapaziada de Estocolmo passou por muito nestes dois anos. Perdeu para o Além o guitarrista e co-fundador Benjamin Vallé e em dois anos lançou Welfare Jazz (2021) e o fantástico Cave World (2022), que constituiu o grosso da coluna em matéria de setlist. Tratando-se de uma banda cujo norme alternativo deveria ser Javardice Boys, naturalmente que a cerveja já voava pelo ar antes de uma nota ser tocada, em bom prenúncio do que aí viria – até porque todos os elementos pareciam estar com a maior ressaca de sempre.
Se a banda tem jogo para dar e vender, é Sebastian Murphy, tatuador nas horas vagas, quem melhor corporiza a sonoridade dos Viagra Boys. Fisicamente lembra o nosso saudoso amigo Rodrigo Velez, aliás Marion Cobretti, tendo ainda uma formosa barriga devidamente tatuada e alimentada a cerveja ao longo do concerto. Ele pontapeia latas e bolas para o público, ele vai cantar (?) às grades e, ao contrário de demagogos populistas da política, ele diz as verdades e chama “falhados do punk rock” ao incansável público, antes de apresentar a canção homónima, Punk Rock Loser.
O som dos Viagra Boys é um smörgåsbord de punk dançável que lembra vagamente os Stranglers de início de carreira, como é o caso de Research Chemicals ou de Ain’t No Thief, ambas destaques da noite. Como banda empreendedora e prolífica que se preze, obviamente que tem outra profissão (fictícia, cremos): Murphy declarou que os Viagra Boys trabalham para a Vodafone e que quem quiser um plano de dados vantajoso só teria de falar com ele depois do concerto. Vamos a ver é se os falhados do punk têm cheta para isso.
Com canções como Sports e Shrimp Shack se foi construindo um concerto memorável, que acabou com o saxofonista e o teclista a terminarem a actuação no fosso, numa parede de barulho. Piada fácil, bem sabemos, mas que tem de ser feita, em nome da verdade: mesmo sendo em final de noite, a música dos Viagra Boys levantou tudo o que havia para levantar.
O dia estava terminado, mas não a dureza, que o terceiro dia seria mais um para desgastar plantas dos pés no que durante o resto do ano costuma ser relva. E de usar máscara, que o pó não dá tréguas. O melhor ainda estava para vir.