//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Com a chegada de sábado, último dia de festival, era tempo de começar a levantar a feira. No entanto, apesar de o fim da festa dos trinta anos de Paredes de Coura estar a horas de distância (isto para quem não ficasse a dar tudo na programação de after do dia seguinte, domingo), o último o dia era, à semelhança do primeiro, um dia preenchido, perspectivando-se umas piscinas entre palcos.
Afigurando-se como um dia bem programado para qualquer alterno digno desse nome, contaria com o extrema e ansiosamente aguardado concerto de mais outra instituição, os Wilco, um nome de letras gordas do post-rock a tocar o seu disco mais emblemático, o regresso dos Sleaford Mods, excelsos trovadores pós-modernos britânicos e magos franco-belgas das 140 batidas por minuto para encerrar as festividades, sem esquecer um dos melhores concertos da história do festival, Les Savy Fav.
Lee Fields (palco Vodafone)
Um dos últimos sobreviventes dos grandes nomes da soul e da funk, Lee Fields chegou com a máquina bem oleada, fruto de décadas na estrada e de cumprimento escrupuloso da praxis dos artistas do género. Não se trata de algo totalmente novo em Coura, porque ainda há poucos anos lá tivemos o saudoso Charles Bradley, num concerto que deixou muitas saudades, redobradas com a morte deste.
Fields é daquelas personagens que merece que a descubram. Trabalhou com mais de meio mundo nos domínios da soul e do funk, com uma perninha nos blues – assumiu-se vigorosamente como um homem dos blues no concerto, de resto.
Introduzido à maneira antiga pelo hypeman da banda (cujos sopros e órgão Hammond deixavam antever o que aí vinha), passeou o drip de um blazer e botas condizentes, uniforme de quem já vira frangos há muitos anos. E desenganemo-nos: até pode ter algumas parecenças com James Brown (chamavam-lhe “little JB”), mas Fields é bem mais do que um sósia de um maioral.
Com intervalos grandes entre edições, a maioria da obra própria de Fields é recente, quase como um revivalismo. E veio a calhar You Can Count On Me, história que por cá podia ser de Nel Monteiro ou Marante, sobre um amor desavindo e platónico, com Fields a pretender ser o paladino que salvaria uma donzela de um amante manipulador. E nem precisa de armadura, que o microfone é a sua espada.
Quase em tandem com as vetustas tradições das cantigas de amor (como por exemplo do minhoto João Garcia de Guilhade), Fields proclama o seu amor e devoção pelas mulheres quando canta I Still Got It e Ladies. No primeiro caso, a idade lhe toldou a devoção, sejam elas como forem (como George Costanza, também gosta delas altas) e no segundo não disfarça a volúpia por uma mulher voluptuosa, assim como o “colega” Smokey Robinson, este ano regressado aos discos.
Com toda a espécie de maneirismos e envolvendo a banda neles (uma espécie de comboio palco fora com o saxofonista, vide a imagem abaixo), foi conquistando o público, que já mal ligava ao tempo nebuloso. Este podia dar-se por satisfeito, ao assistir ao espectáculo de um digno herdeiro de nomes grandes de outrora, como Lee Dorsey ou Sam & Dave.
E como a mensagem a passar era de que não há melhor do que o mulherio, Fields não se fez rogado e foi elogiando as mulheres das primeiras filas ou dando os parabéns aos companheiros destas por tão boa companhia. Mesmo que seja já um truque velho, a cortesia não lhe fica mal, até porque se trata de um distinto cavalheiro que já deve ter visto mesmo muita gente nas plateias dos penteados tipo colmeia às madeixas azuis e verdes.
A costela de blues de Fields manifestou-se numa sentida What Did I Do. Com o auxílio de uma banda competente, Lee Fields levou a água ao seu moinho (que deve ter a forma de um coração) e encimou um concerto bem esgalhado.
As desavenças, desgotos e alegrias do amor contadas a várias dimensões por Lee Fields, nome distinto e com drip a vestir e ao microfone. Velhos são os trapos, que a gente só precisa de um órgão Hammond e de uma secção de sopros para mostrarmos o que valemos. E o que amamos.
Sleaford Mods (palco Vodafone)
Presença habitual por cá, mas já não pondo os pés em Coura desde 2016, a dupla inglesa não mudou uma vírgula – salvo umas ligeiras evoluções nas batidas e samples – na sua arrecadação de material de guerra verbal. Jason Williamson e Andrew Fearn deixaram crescer umas barbas e estão um pouco mas grisalhos, mas o ácido está lá todo. E têm um veículo de ataque novo chamado UK Grim.
A música homónima deste último álbum, que foi logo a primeira pedrada do concerto, pode ser mais dançável e idiossincrática do que violenta (e esta mais psicológica do que física), mas a realidade retratada pelo duo de Nottingham é um misto de modorra e de lixo político (Liz Truss à cabeça) que, como impõe a letra, merece é caixote do lixo.
E o país deles, como está? Estes Sr. Pouco Feliz e Sr. Nada Contente não podem com o governo nem com o Estado e para eles mais vale um barco salva-vidas decente, que a terra está a afundar-se num esgoto de corrupção e incompetência. A coisa está mesmo grim para o UK.
Jason Williamson continua musicalmente igual a si próprio, passe o chavão. Assume-se como um frenético pregador da pós-verdade, disparando ácido verbal em todas as direcções, como um MC que desconstruiu tudo o que fossem estruturas e tradições musicais orais. Passa a mão pela cabeça como que a exorcizar demónios (ou então dêem-lhe Quitoso), arreganha os calções e mostra a perna como que uma antiga corista de um cabaré, prosseguindo para uns passinhos de dança à bebé fora de prazo que são já um clássico seu.
Por seu turno e da última vez que o vimos, Andrew Fearn carregava no play, dava um trago na cerveja e dançava timidamente, em modo economizador de energia – como que um Bez ligeiramente menos ocupado. Já em 2023 parece ter apanhado o bicho do estilo de vida saudável e é um tanto ou quanto o campeão de aeróbica de Nottingham. Quem dera a muitos com metade da sua idade, que cinquenta minutos sem parar não são para meninos.
O cinzentismo meteorológico e urbano britânico é-nos recontado com todos os pormenores sórdidos. Por cima, uma dose cavalar de pessimismo antropológico, quando Williamson proclama que “somos uns bifes inúteis, merecemos é estar enjaulados”.
Tied Up in Nottz, porventura a melhor canção da dupla, é sempre um estalo pós-contemporâneo. Os nossos endiabrados interlocutores terão de enfrentar a vida sóbrios em sítios que cheiram a mijo – ou a toucinho razoável (ou será a ambos os Francis Bacon ou a Kevin Bacon?). Convém mencionar que é representativa de uma fase primitiva da cronologia da banda e, para quem tem mais de década e meia disto, pede-se uma evolução mais cabal – em estúdio e ao vivo – para não se perder o assunto.
Ao fim de mais de três quartos de hora de neura, os Sleaford Mods deram por terminado o concerto no festival onde, pedindo desculpa pelo facto, “continuamos sem conseguir pronunciar o nome”. Talvez seja altura de comporem uma canç-, invectiva contra dicionários inglês-português que não ensinam a pronunciar nomes portugueses como deve ser. Adivinhamos já muitos “fookin’ porra” pelos versos.
Explosions in the Sky (palco Vodafone)
A morfologia do terreno do palco principal de Coura é especialmente convidativa para certos géneros e certo tipo de bandas, como é o caso do post-rock – o concerto de Mogwai que ali teve lugar em 2011 ainda hoje desperta reacções. Nada como chamar Explosions in the Sky para testar se o anfiteatro natural ainda é propício ao post-rock. E nada como ter a banda texana a tocar The Earth Is Not a Cold Dead Place para se fazer uma espécie de casamento de anos: trinta anos do festival e vinte daquele álbum, pedra angular na discografia do grupo.
Amplamente imitados por uma data de bandas inferiores, mal os Explosions in the Sky pegaram em First Breath After Coma mostraram que post-rock da suavidade (com peso de quando em vez) é com eles e procederam a uma interpretação imaculada e superior daquela canção. Quando Munaf Rayani começa a ondear com a guitarra pela cintura e dispara melodias tipo pistoleiro é porque Explosions in the Sky estão em palco.
Piadola, bem sabemos, mas momento único foi The Only Moment We Were Alone. Dez minutos que justificam o estatuto no cartaz dos texanos e o porquê de The Earth… ser considerado um clássico do género. Muita entrega na execução e muito pescoço balançante na plateia, com umas quantas bolas de sabão a dar uma textura choninhas para as coisas não ficarem demasiado sérias e melancólicas.
A chuva da noite anterior teria enquadrado lindamente o concerto, mas o contrário também não ficou nada mal. O céu foi abrindo ao longo da noite e Memorial foi outra reflexão post-rock de fino recorte.
Com as (malditas) sobreposições de horário tivemos de largar mão dos Explosions in the Sky precisamente em Your Hand in Mine. Dizem os odiadores que é post-rock para pitas e putos, uma espécie de Nothing Else Matters do post-rock, mas após estes anos todos é das malhas fundamentais da banda. Lá ao fundo, no palco secundário, distinguia-se Greet Death, um brinde de Those Who Tell the Truth Shall Die, Those Who Tell the Truth Shall Live Forever, irmão mais velho de The Earth… (muito gostam eles de títulos grandes), editado nesse terrível ano para os E.U.A. que foi 2001, mais a polémica associada ao livrete do disco por suposta (falsa) correlação com o 11 de Setembro.
O foguetório dos trinta anos do festival não teve lugar no céu, mas num palco e num local onde os texanos mostraram que a Terra não é um sítio morto – saudações à morte só em canção, mesmo.
De uma saudável dose de post-rock fomos arranjando lugar para o que já era expectável que viesse a ser um dos concertos deste festival: Les Savy Fav. E daí para outro nome gigante do cartaz, os Wilco. Ambos mereceram textos próprios, pois a ouro gravaram o seu nome na História do festival.
Depois disso, os ansiosos mochileiros que ocupavam pacificamente as grades desde o abrir de portas do recinto finalmente poderiam ver Lorde. A neo-zelandesa não deu tréguas, pegou logo em Royals e prosseguiu, entre chumbos a Geografia de Portugal (não, não estamos no Porto, amiga) e elogios a um público que supostamente a mudou desde a sua primeira actuação por cá (Rock in Rio, 2014), a hora e tal a fazer sala pop para uma plateia já rendida e que lhe deu ovações enormes de volta.
Ascendant Vierge (palco Yorn)
Enquanto All My Friends dos LCD Soundsystem bombava no palco Vodafone e os balões gigantes assaltavam a plateia, nesse momento Carvalhesa de Coura, no palco Yorn subiam a palco, com doze minutos de atraso, os Ascendant Vierge, dupla franco-belga constituída por Matilde Fernandez e Paul Seul, este co-fundador de Casual Gabberz, colectivo dedicado ao gabber. E de que se ocupa este projecto? Também de gabber, isto é, de 140 batidas por minuto para cima e sintetizadores em esteróides – por outras palavras, de aeróbica de pastilhados.
O maior elogio que podemos fazer à dupla é este: já que não temos Scooter em Paredes de Coura, então Ascendant Vierge cumprem muitíssimo bem e são de partir chão. E foi isso mesmo que fizeram, mediante a voz diabolicamente angelical (passe o paradoxo) de Fernandez, que mais parecia que estava a anunciar graciosamente o Apocalipse, e a produção de Seul – que deve ser usada em testes de resistência de tampões de ouvidos.
Para quem tem uma descarga chamada Je Suis Un Avion, os tampões são (ainda mais) necessários. Nas projecções anuncia-se que vem lá descolagem e não tardou para se chegar a V1, subir as BPM sustentadamente e recolher o trem. Avião movido a azeite, mas àquela hora já ninguém queria saber de preciosismos musicais, só mesmo de andar numa última festança e, bem, Ascendant Vierge dão-te asas.
Tal como no ano passado, o encerramento (para nós) do festival foi uma reunião magna dos degenerados. Como uma Ana Malhoa hiper-turbinada, Fernandez canta o fim dos tempos enquanto os balões vindos do palco principal invadem o fim do mundo em cuecas que ali se via. Saltos, mosh pit, bandeiras da Eslováquia e demasiadas pessoas de óculos escuros a meter o pedal a fundo.
Enquanto projecto criado numa época que tudo e mais alguma coisa viraliza na Internet (menos a noção, infelizmente), o duo tinha de abordar o tema em Influenceur. Toda uma degenerescência no videoclip lá atrás projectado e um batidaço sísmico indicado para destruir servidores.
Em suma, um excelente fecho de festival para deslindar quem ainda tinha estaleca para aquela bomba e quais eram os duros (de ouvido, sobretudo) que ainda aguentaram uma última carga. Para nós, nada virgens em aventuras courenses, era tempo de despedidas dos amigos e de ir buscar a garrafa de vinho oficial dos trinta anos do festival, que bem serviu de champanhe depois de uma corrida de Fórmula Um.
Porque, afinal de contas, chegámos a uma bela meta.