Reportagem


Vodafone Paredes de Coura

O segundo dia do Vodafone Paredes de Coura 2023 contou com regressos em forma de estreia, viragens artísticas e desconstrutivismos.

Praia Fluvial do Taboão

17/08/2023


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Depois de um primeiro dia intenso e com esplendor de celebração, o segundo dia do Vodafone Paredes de Coura, ainda que com menor número de propostas, manteve o nível do dia inicial. Destaques para Avalon Emerson & the Charm, The Brian Jonestown Massacre e Fever Ray, sem esquecer o prato principal do dia, o do regresso de hiato dos The Walkmen e sua estreia em Coura.

 

Avalon Emerson & the Charm (palco Yorn)

A findar a tarde, Avalon Emerson, produtora e DJ (remisturou, entre outros, Slowdive, Robyn e Four Tet) do Arizona que arrojadamente decidiu arrumar por ora o lado mais techno e lançar este ano um (bem bom) álbum, & the Charm, que puxa mais para o lado mais melódico e introspectivo da pista de dança – disco esse que dá nome à banda com que se apresenta em Paredes de Coura. Independentemente da opção estilística, o habitat seria sempre o da pista de dança.

Apresentando-se tímida e educadamente, com dois asas que asseguraram a parte instrumental da actuação, lançou-se a Entombed In Ice, canção que estabelece este lado mais introspectivo de Avalon Emerson, não sem antes os arranjos de guitarra darem de si e conferirem algum sangue na guelra à composição. Uma pequena falha técnica obrigou a repetir o começo de Sandrail Silhouette, que confirmou a introspecção desta fase da obra de Emerson.

Introduzida pela própria como uma canção sobre o abandono do passado e seus efeitos depois de se crescer, é marcadamente influenciada por muita da synthpop de oitentas, como os Heaven 17 ou os Yazoo. Elogios a Coura e à beleza do lugar não podiam obviamente faltar e a actuação reflectiu a calmaria do disco.

Coube ainda no alinhamento uma versão de Long-Forgotten Fairytale dos Magnetic Fields, que marcou a viragem, na obra de Emerson, do techno para as actuais paragens. Ainda que não fosse altura de Mercúrio retrógrado, Astrology Poisoning foi, ao contrário da Astrologia propriamente dita, agradável e de consenso.

Tudo somado, a actuação de Avalon Emerson e comparsas serviu para cimentar as boas ideias que constam em & the Charm e para aplaudir a mudança de faixa (piada privada de DJ) artística da produtora do Arizona.

 

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The Brian Jonestown Massacre (palco Vodafone)

Não sabemos se os The Brian Jonestown Massacre, titulares da vaga de psicadelismo desta edição do festival, são uma banda ou uma empreitada psicadélica que se vai fazendo – talvez um pouco de ambos. Já Anton Newcombe, líder do grupo californiano, é uma personagem e tanto, vestido a rigor à moda de Bob Dylan por alturas da Rolling Thunder Revue e situado a 90º do resto dos cúmplices, que nem outro maioral do rock de viajar por aí há uns anos, Jason Pierce e os Spiritualized; E não é o único: Joel Gion, profissional da pandeireta, é uma espécie de hypeman da banda de São Francisco, bem como uma quase-mascote do grupo.

Quando o grunge já cheirava a cadáver em decomposição, Newcombe e a banda estabeleceram-se como artisticamente válidos para empunharem o estandarte da vanguarda da música popular –  no capítulo do psych rock estavam quase sozinhos, diga-se.

Nesses meados da década de noventa, quando a banda tinha já uns álbuns no saco, sai-se com Take It From The Man! e Their Satanic Majesties’ Second Request, manifestos de rock psicadélico na era imperial das Doc Martens e das camisas de flanela, um retorno a 1967 e às botas bicudas e aos blusões de cabedal. Certo é que são trabalhos que ficaram para a posteridade.

Mesmo em obra mais recente o patchouli não desaparece. Bem executada, The Real é o que passa por músculo eléctrico nesta actuação, com a voz de Newcombe a mostrar a fragilidade criada pelos excessos da vida. Dentro do alinhamento, as escolhas poderiam ter sido melhores; uma Straight Up and Down teria atraído mais a atenção do público do que outras escolhas mornas, que convidavam à desatenção.

Não é só a música de The Brian Jonestown Massacre que é um museu de rock psicadélico e de folk rock; é também um museu de guitarras semi-acústicas de respeito, quase se podendo dizer que a Vox é patrocinadora oficial da banda, óbvia entusiasta do coleccionismo (e que no ano passado quase que perdeu o material). E tudo isto não é em vão, que canções como Do Rainbows Have Ends resultam num muro psicadélico que poucos fazem.

Dentro do campo de momentos altos do concerto, Pish é escolha óbvia. Uma versão fantasmagórica, como se se estivesse a navegar num Coura que é um Estige ou um Ganges onde fluem as baixas do psicadelismo de sessentas. E a pandeireta, sempre a pandeireta a servir de pacemaker e svengali da banda.

A veia de personagem de Newcombe surge quando este inventa uma história de que a mãe, no leito de morte, terá dito: “digam ao Tony para cortar nos baixos”. Tudo isto para ordenar a quem estava encarregue do som de cortar o sub-bass, “senão não tocamos como deve ser”.

Ainda que as nuvens encobrissem o recinto e impossibilitassem o cenário ideal para se desfrutar de Anemone, ao fim de meio minuto de canção e do seu assinalável trabalho de guitarras já se viajava malha fora. Muita influência da banda aqui conflui: David Crosby (e The Byrds), Electric Prunes, The Monks. Confluem, também, bolas de sabão, um singelo efeito cósmico enquanto os acordes soavam pelo PA, rumo ao anfiteatro de Coura. Uma senhora malha, que não admira nada que fosse das canções da vida de Anthony Bourdain.

Últimos destaques do concerto para Servo e The Mother of All Fuckers, esta um amontoado de fuzz a puxar para o shoegaze, cheia de Spacemen 3 na veia. Um concerto com mais altos do que baixos, em que os primeiros suplantam e fazem esquecer os segundos. Tocar 1967 em bons discos de 1996 num festival em 2023, nada mau.

Onde quer que esteja, David Crosby acenou em aprovação.

 

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Uma pausa para configurar o palco principal para o nome maior do dia, os Walkmen. E para meter qualquer coisa ao bucho, que repórter, tal como um exército, marcha sobre o seu estômago.

 

Fever Ray (palco Vodafone)

Se o dia começou com pop mais pensada, também assim acabou. Fever Ray, projecto de Karin Elisabeth Dreijer, apresentou-se em Coura como há dez anos se apresentaram os The Knife, agrupamento de pop experimental do qual era também membro o seu irmão, Olof Dreijer (que colabora em estúdio), isto é, como um enigma artístico.

O desconstrutivismo de Fever Ray pode levar a uma multitude de caminhos e seríamos testemunhas disso. Performance de dança e percussão, com umas melodias pelo meio? Siga. Lição de música pós-contemporânea onde tudo é questionado? Bora. Um candeeiro de rua e um jogo de luzes e fumo com uma banda sonora? Avante. Transgressão como única regra? Pode ser.

Dreijer apresenta-se como se o Night King de A Guerra dos Tronos tivesse roubado o fato que David Byrne vestiu em Stop Making Sense. Um completo desconstrutivismo estético que fez pandã com a música saída do PA – da mais interessante pop experimental da última década, de resto. As restantes membros tinham também a sua persona de palco, perfazendo os pelouros da dança, da percussão e da restante instrumentação. Há ordem no caos de Fever Ray, apesar de tudo.

When I Grow Up é das melhores composições que Dreijer deu à edição. Aqui expandida por mais um par de vozes e uma coreografia vigorosa, marcou um regresso ao disco de estreia, Fever Ray.

Com todo o arsenal de sequenciação e manipulação, Dreijer transforma a sua voz num pregão de pesadelos (mas ainda assim não consegue fazer as duas vozes de Modern Talking como o Sensei Manuel Almeida), mantendo a sua inconfundível identidade e sempre no comando, potenciada por um jogo de luzes e fumo impressionante.

O lado mais transgressivo aparece-nos pela frente em To the Moon and Back. Paradoxalmente, talvez seja do material mais sonicamente acessível dentro do arsenal de Fever Ray, mas quando a letra é explicitamente sensual e sexual já não estamos em terreno pop para toda a família. Mal nenhum.

Quem disse que noutras dimensões não se dança? Shiver desmente tudo isso e puxa-nos pelas ancas e pelos ombros, em toda a sua genialidade. É inteiramente possível concluir que estamos diante (não só nesta canção) de uma actualização de Klaus Nomi para a era dita digital.

Porém, nem todo o material de Fever Ray vive noutra dimensão. Even it Out, faixa produzida por Trent Reznor e Atticus Ross (o que equivale a dizer que podia ser uma canção de Nine Inch Nails com colaboração de Karin Dreijer), é um conto de vingança (surrealista, ainda assim) contra um bully.

Tempo ainda houve para uma pantomina com impermeáveis que, atento o lugar e o festival, foram um prenúncio para a chuva (esse clássico de Coura) que cairia no dia seguinte. Uma vénia e ala, que se faz tarde.

No cômputo geral, o concerto de Fever Ray foi uma actuação que reuniu mais consensos do que a de The Knife em 2013, situando-se no topo dos concertos desta edição. Por entre a pantomina e a descontrução pop, é todo um fôlego que Paredes de Coura bem merece.

O fato largueirão de Dreijer e o candeeiro em palco remetem-nos ainda para Vasco Santana n’O Pátio das Cantigas, pelo que não resistimos:

“Boa noite V. Exa.. V. Exa. vai perdoar-me a inconveniência, mas podia fazer-me o obséquio de me dar um bocadinho da sua pop experimental?

 

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A caminho da saída, uma vista de olhos pelo palco Yorn, onde actuava Joe Unknown. Espécie de rapper, troll com microfone e provável filho bastardo de alguém de Sleaford Mods, desafiava o seu DJ a ir para o meio do pit arriscar a própria vida. Não sabemos se saiu dali vivo ou não, mas a ausência de sirenes durante a noite e de notícias na Correio da Manhã TV no dia seguinte foram um bom augúrio.


sobre o autor

José V. Raposo

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