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O primeiro clássico courense do terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura foi a chuva, que paulatinamente foi caindo até ensopar tudo e todos ao fim da noite. Tal não impediu, no entanto, de se desenrolar um dia de festival que nos brindou com mais diversidade musical, na qual se incluiu uma revelação, a promoção de um bandão e até uma coroação.
O dia a sério começou ainda antes de a acção no recinto arrancar, com a celebração dos dez anos de Xapas do glorioso colectivo GPSS. Uma década desde o primeiro set no outro lado da rua, com casa e copos cheios, aquele braço dado de Dino Meira com Darude, de Se Bem (o padre morreu, a missa acabou…) e o pastiche de projecções do grupo e uma recta final de gabber. E, claro, a oportunidade para ouvir aqueles prazeres proibidos de que não se admite gostar.
As nuvens até podiam ameaçar o conforto do terceiro dia de campanha, mas a música sobreviveria intacta.
Kokoroko (palco Vodafone)
Nos últimos anos, Londres tem sido o epicentro de muito do melhor jazz que se tem feito e, como tal, não faltaram nomes daquela cena em Paredes de Coura – como The Comet Is Coming em 2022. Nesta edição foi a vez dos Kokoroko (“sê forte”, em língua dos urrobos, povo do Sul da Nigéria), septeto cuja porta-voz foi Sheila Maurice-Grey, trompetista e vocalista de excepção.
À semelhança de vários conterrâneos, os Kokoroko não estão em nenhum pedestal e não se importam de transpor fronteiras. Talvez não faça grande sentido colocá-los apenas na caixa do jazz, porque se por um lado podem ser herdeiros da Arkestra de Sun-Ra, por outro exibem toda a energia do afrobeat.
Destaque da actuação, Something’s Going On é prova da junção criativa da banda. Um notável trabalho de sopros – trompete e trombone – e um ritmo que evoca Tony Allen e os primeiros pingos de chuva são ignorados pela plateia, que já está a dar ao pé.
Não foi apenas Allen a ser evocado no concerto. A própria banda pergunta ao público se conhece gente como Pat Thomas (poucos), Ebo Taylor (poucos) e Fela Kuti (ovação). E prossegue na sua demanda afrofuturista, com uma expansão ao vivo das versões de estúdio, já de si de qualidade. Fique também lavrado em acta o trabalho de guitarra de Tobi Adenaike, que foi bem mais do que um apêndice às secções de ritmo e de sopros.
Um último trunfo na manga dos londrinos, já de si atreitos a interagir com o público. Um pouco de “e vai abaixo e vai acima” para exercitar os joelhos e, logo a seguir, as palmas e os saltos do público – pela reacção, as dobradiças do pessoal estão a funcionar como deve ser.
We Give Thanks, tocam eles. E a gente agradece de volta.
Expresso Transatlântico (palco Yorn)
Fundado há tão pouco tempo que ainda cheira a novo, o trio lisboeta (aqui em quinteto) Expresso Transatlântico, composto pelos irmãos Sebastião (guitarra eléctrica) e Gaspar Varela (guitarra portuguesa) e Rafael Matos (bateria), rapidamente chegou aos grandes palcos deste País. Ascensão por mérito, que o que ali se passou não é para qualquer banda. Nepo babies? Também não, que Sebastião e Gaspar serem bisnetos de Celeste Rodrigues e sobrinhos-bisnetos de Amália é apenas demonstrativo de que o talento lhes corre nas veias e que até Madonna já o testemunhou em palco, literalmente ao lado de Gaspar.
Chegados ao palco, estava Gaspar Varela de joelhos, qual Hendrix/Townshend/o vosso herói preferido das guitarras, de joelhos a viver o momento e a mostrar aquilo de que os Expresso Transatlântico são feitos: de sangue, cordas, acordes, talento e alma. Aquilo que Gaspar mostrava com acções, Sebastião mostrava com palavras: professou o seu amor por Coura e o significado de ali actuar, depois de ver tantos outros a tocar ao longo dos anos.
A ora coreografia, ora duelo entre as guitarras (e respectivas escolas) é a maior força dos Expresso Transatlântico, juntando-se aos arranjos de variadas geografias numa mistura gloriosa, numa Primeira Rodada a beber com sofreguidão. Perante este cenário, os já aludidos comentários de que “há vinte anos é que o festival era bom” têm cabimento? Não têm, não passam de nostalgia por um passado que agora até parece mais cor-de-rosa.
Em momento solene, Gaspar Varela senta-se à beira do palco e convida tacitamente todos para um momento de homenagem dedilhada à guitarra portuguesa. Luz avermelhada e um monólogo genial onde a guitarra portuguesa mandou em Coura.
Bombália, single deste ano, é uma gigante canção. Um destilar de tradição num caldeirão de modernidade de onde sai algo novo e exuberante, tão exuberante que nos enche o peito – de admiração perante a música que nos chega e de esperança por novo material deste calibre por parte da banda de Lisboa, que tem novo álbum a caminho.
A originalidade tem por corolário um turbilhão que bate contra nós como um vagalhão bate contra o Cabo Espichel. Sebastião percorre as vias do post-rock enquanto Gaspar se afirma como membro da ala reformadora da guitarra portuguesa – a par de, entre outros, Ricardo Rocha. A secção de ritmo, por sua vez, ajuda a construir o telhado de um aguerrido edificado.
Da semente deitada à terra criativa nacional pelos Dead Combo algum dia teria algo decente de brotar. E esse fruto são os Expresso Transatlântico, a maior revelação desta edição de Coura. Bem hajam, porra.
Thus Love (palco Yorn)
Uma shoegazada estava em falta e a lacuna foi plenamente preenchida pelos Thus Love, trio norte-americano oriundo de Brattleboro, no Vermont. Terem-se fechado num apartamento a compor por alturas da pandemia foi uma excelente ideia, vertida num excelente disco, Memorial (2022), e agora em palco minhoto.
E desse mesmo álbum não perderam tempo a desfiar Repetitioner. Cinco minutos de trabalho de guitarra emocional e onírico, completados por uma secção de ritmo que não perde pitada e a voz de Echo Marshall a evocar a de Peter Murphy, isto se enveredarmos pelas comparações de há vinte de anos entre as vozes de Ian Curtis e Paul Banks.
Num concerto que estava a correr bem, subitamente os pedais de Marshall morrem e a sua Jazzmaster segue para o desfibrilhador, mas a bateria, o baixo e o microfone não param e a letra continua a ser declamada num estilo providencial e confiante. Marshall justifica-se, atribuindo a maleita de palco ao equipamento: “eu sou daquelas pessoas idiotas que usam pedais, portanto vamos lá ver se isto aguenta!”
Com toda a franqueza, canções como Inamorato não precisam de muito para saírem bem. A energia de Marshall leva a que se empoleire na bateria algures pelo concerto e eleve as coisas a outro patamar, daquele de um concerto que fica na memória.
Com ou sem pedais, aquilo que se vê de Thus Love é aquilo que se obtém. Echo Marshall continua irrequieto e vem novamente ao público ou rodopia pelo palco num solo, não sem antes de cantar os desconfortos pessoais e embaraços da letra de In Tandem, faixa maior da obra do grupo.
Obra essa que cresce, tendo os aficionados de Coura direito a duas canções novas. Encontramos assim os Thus Love naquele momento crucial da história das bandas em que são simultaneamente prolíficas em estúdio e profícuas ao vivo.
Se umas horas antes tivemos Gaspar Varela a gesticular enquanto tocava como se fosse um Pete Townshend de Lisboa, para o terminus do concerto de Thus Love vai outra farpa para quem diz que o rock está morto no festival: Echo Marshall resolve imitar o mestre dos The Who e estralhaça a guitarra no palco, levantando uma nuvem de pó e servindo de apito final.
Terá sido frustração com os problemas de som, gesto calculado ou simplesmente uma aposta mal sucedida na Betano em como o Paulinho não iria marcar contra o Casa Pia? Deixemos a resposta para o mito rock’n’roll.
Yung Lean (palco Vodafone)
O cloud rapper sueco, nascido Jonatan Aron Leandoer Håstad, é um fenómeno do Entroncamento da Internet e conseguiu chegar a Coura talvez por milagre. Conforme explicou entre canções, mal chegou ao Porto alugou um carro e teve um acidente. Motivo para se ficar logo sad boy.
Relacionado ou não com a matéria factual do parágrafo anterior, Afghanistan marcou presença no alinhamento, o refrão repetido como se fosse um mantra. Os problemas de Yung Lean com estupefacientes e psicotrópicos são conhecidos e com consequências no seu foro mental – xannies, lean e afins foram/têm sido indevidos companheiros de vida do artista. Mas constituem muito do pano de fundo do seu material, um repertório de alienação na vida real e atrás de um nickname ou de um handle na Internet.
De acordo com que se via no batalhão da frente, Håstad tem um corpo de fãs portugueses que conhece e segue aquilo que tem para dizer. E que não teve peias em levantar um pit enquanto o índice pluviométrico obrigava a puxar dos impermeáveis. Bravos vikings courenses da rima.
Como bom exemplo da música urbana da era da pós-ironia, pós-verdade, pós-contemporânea (demasiados pós), Lean apresenta Pikachu. Conto sobre viver rodeado de drogaria e shawties, a moca da letra é tanta que até a pulseira lhe lembra a personagem do Pokémon, tudo rimado com sentimento, porque até sad boys e drainers têm coração.
O drip de Yung Lean é um de Robbie Williams ou de um Backstreet Boy por volta de 1998. Não que isso desvirtue o conjunto, é apenas uma manifestação da mescla cultural (na forma e no conteúdo) dos últimos vinte anos. E, bom, no conteúdo o rapper sueco é descomplexado e tanto lhe dá para o auto-tune como para o azeite slowtempo, atitude que só o favorece.
A espaços, a obra de Yung Lean consegue ser interessante, já noutros é pura mediocridade e bocejo repetitivo para zoomers. Foquemo-nos antes no (muito) bom, como é o caso de Bliss.
A colaboração de Yung Lean com FKA Twigs, que se serve de um sample de Na Zare de Alyans, pérola da synthpop soviética, metamorfoseia-se num prazer pop com umas rimas que combinam bem com o talento vocal de Twigs. Interpretada com distinção, foi um oásis de redenção e divertimento num deserto de negrume e alienação.
Serão os drainers e sad boys os novos góticos? É possível, pelo que se ouve na vinheta que inclui, entre outras, Yoshi City. Exército esse que, merecidamente, deve direito a uma dedicatória: “para todos os verdadeiros sad boys e sad girls”.
Goste-se ou não, Yung Lean é nome preponderante no sempre crescente mundo do hip hop. Para lá dos palcos, é um aristocrata das plataformas de streaming e dos TikToks e, ainda, um exemplo acabado de que os excessos não só dão cabo da vida de uma pessoa, como podem também prejudicar (e inspirar) toda a arte de um artista que entrou há coisa de um mês nos 27 anos de idade. Caneta ao papel e amigos verdadeiros em vez de xannies.
Os ultras de Coura aprovaram sobremaneira o concerto do autor de Miami Ultras, que terá saído do templo com boa nota. Para a próxima, contudo, dispensa-se o jogo de bebida de mandar um trago (aqui só água) de cada vez que Yung Lean chamava “Porto” a Paredes de Coura.
Quem é drainer e sad boy que ponha a mão no ar, mas não num volante. Sobretudo depois de lean e de Cabriz.
Depois de actuarem no Festival Sobe à Vila, os Máquina foram os Baleia Baleia Baleia deste ano, ao substituírem The Last Dinner Party, impossibilitadas de viajar até ao Minho devido a doença na banda. Dos poucos minutos que lhes vimos (ainda há poucos dias tínhamos visto a sua jarda no MusicBox, na primeira parte de A Place To Bury Strangers, banda que precisa de Coura no seu currículo), a maquinaria estava suficientemente oleada para pôr o público a gritar o nome da banda ainda nem tinham entrado em palco.
O que se seguiu foi um estampido de rockalhada e de noise para ficar nos anais desta edição do festival. A banda estava embrenhada e com níveis de entusiasmo a roçar o tecto da tenda do palco Yorn.
Da jarda luso-brasileira seguimos para a jarda inglesa dos Black MIDI, repetentes em Coura mas promovidos ao palco Vodafone. E daí para Little Simz, também membro da armada britânica que tanto estardalhaço provocou este ano no anfiteatro natural da música.
No fim da noite, tenda cheia para assistir à festa dos MADMADMAD. Uma certeza antes de rumar a casa: a de que todos estavam ensopados de água e de bom som.