Reportagem


Vodafone Paredes de Coura 2024 - 1º Dia

No primeiro dia de Coura foi-se do deserto à exosfera e aterrou-se à bruta num mosh pit.

Praia Fluvial do Taboão

14/08/2024


© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Agosto vai a meio e tal significa uma nova campanha courense, momento mui aguardado por muito boa gente, sobretudo naqueles momentos depressivos de Inverno em que as agruras da vida parecem não acabar. O Couraíso esperou por nós e nós por ele e eis, então, a edição de 2024 do Vodafone Paredes de Coura.

Após três noites de aventuras na vila, com os concertos e DJ sets d’O Festival Sobe À Vila à mistura (incluindo um bom concerto de 800 Gondomar, recompensados com uma actuação no recinto após o cancelamento dos britânicos Bar Italia), era tempo de descer até à zona do rio e de arrancar com esta edição do festival grande nacional que menos se aproxima de um parque de diversões com uns palcos e que mais se aproxima de um verdadeiro representante nacional num hipotético campeonato mundial de festivais grandes.

Feitas as formalidades de registo, cumpria descer pelo anfiteatro natural de Coura. O pontapé de saída deste primeiro dia foi dado no palco Vodafone com o trio Noiserv, First Breath After Coma e a Banda de Música de Mateus. Disparidades acentuadas em termos de assunto ditaram que o concerto resultasse num misto de actuação de banda de versões de Explosions In The Sky e num bom espectáculo da banda filarmónica do post-rock.

 

Sababa 5 – Palco Yorn

Final de tarde em Coura costuma significar banda que oscila entre o indie agradável e algo dançável e a música ligeiramente psicadélica, seja na relva do palco principal ou na sombra do secundário. As honras deste ano couberam ao quarteto israelita Sababa 5, que cumpriu sem mácula o que lhe foi pedido: manter essa tradição de começar a meter o pessoal a mexer-se enquanto é de dia – e a mostrar o imenso assunto do cartaz deste ano.

Um exercício de preguiça intelectual e cultural seria o de enfiar o grupo de Tel Aviv nessa estafada gaveta das “músicas do mundo”. Todavia, os Sababa 5 (que nem sequer são cinco) são mesmo cosmopolitas sónicos, indo beber a várias fontes – do funk norte-americano ao psicadelismo doméstico e às mesclas dos mesmos ali do Médio Oriente.

Numa inspirada interpretação de Lizarb cabe muita coisa: uma batida à Kool & The Gang, um Farfisa a fazer horas extraordinárias e uma rememoração de gente como Aït Meslayene ou o compatriota Shmulik Kraus. A coisa estava a resultar em cheio, que o público foi crescendo em número e em movimento. O revivalismo dos grupos de lehakot ketzev (uma espécie de ié-ié israelita de sessentas) estava a arrebatar a plateia.

E não era para menos, que a banda de Amir Sadot (o extrovertido e agradecido baixista) e companhia é tecnicamente capaz e com créditos firmados na música popular israelita contemporânea. De resto, as miscigenações sónicas não são novidade, que Sadot colaborou com Liraz num encontro entre os sons dos ashkenazim e dos mizrahim.

Não tendo sido um momento “Leonard Cohen no Sinai” (mas suficiente para que Moisés dividisse as águas do Coura), a actuação de Sababa 5 deu para bater o pezinho e, sobretudo, para ser o primeiro concerto digno de registo desta edição do festival. Shalom para todos e todas em geral.

 

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

 

Terminado o período à sombra da tenda do palco Yorn num deserto do Negev com guitarras (a viagem ao Sahara com Mdou Moctar estava também marcada para daí a dois dias), toca de fazer a curta piscina até ao palco Vodafone, que seria ocupado pelo psicadelismo mascarado dos australianos Glass Beams, não sem alguma polémica.

 

Glass Beams – Palco Vodafone

O trio australiano Glass Beams, cuja actuação foi adiantada por via do cancelamento dos britânicos Bar Italia, é atreito a assuntos de identidade: em matéria de identidade dos membros, só se conhece o nome do seu membro fundador, Rajan Silva (os demais talvez tenham sido videntes em Qarth ou assassinos em Meereen antes de enveredarem pela música, atentas as máscaras); no que respeita à sua identidade musical, é aqui que os problemas começam. Longe está a banda de ser má, que o seu material é bastante agradável para ser ouvido quando se está confortavelmente sentado na relva do palco principal do recinto.

O problema é estarmos perante uma obra que ora é original e interessante, ora é uma cópia de Khruangbin, ao ponto de canções como Silver Tongue ou Black Sand parecerem outtakes do trio de Houston. Não, não são uma banda chata, que o que saiu do PA foi suficientemente interessante para cativar e tornar o momento registável, mas investem no lado menos original em vez de carregarem no lado das ragas de Orb, território onde a originalidade e a distinção favoreceriam o grupo.

O resultado é uma même:

– Mãe, quero ver Khruangbin.
– Temos Khruangbin em casa.
Os Khruangbin em casa: Glass Beams.

Deu para entreter? Deu. Mas ficou um sabor a oportunidade perdida que não foi brinquedo (por brinquedo entenda-se aqui máscara).

 

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

 

Pausa para jantar e preparar o espírito e os ouvidos para o que aí vinha. Falamos do concerto de André 3000, membro dos OutKast e iconoclasta que resolveu afastar-se das rimas (já não tinha nada de jeito para rimar sobre, segundo o próprio) para fazer um disco de experimentalismos com flautas – aposta arriscada deste em estúdio e da organização em trazê-lo. O potencial para ser um concerto memorável ou um fiasco era grande e, tal como pratos de lampreia, seria praticamente impossível ficar pelo meio-termo (em matéria de lampreia, este escriba é dos 0,001% de pessoas que está no meio-termo) no que concerne a opiniões sobre o concerto.

Spoiler: gostámos muito e o mesmo terá direito a texto próprio.

 

Killer Mike – Palco Vodafone

Ainda que fossem quase duas da manhã, havia ainda tempo para um sermão rimado, que em Coura cabe tudo o que é maluqueira. E o pregador seria o reverendo Killer Mike, tal como André 3000 um antigo membro do mítico colectivo de Atlanta Dungeon Family e, tal como este, figura basilar do hip hop dos últimos vinte e tal anos. Sempre, sempre com Atlanta no coração.

Para além de material mais antigo do seu repertório haveria também que pregar escrituras de Songs for Sinners & Saints, álbum editado este ano e que é um ambicioso cruzamento entre hip hop e gospel. E para melhor ilustrar o material daquele disco ao vivo trouxe consigo Trackstar, o seu DJ de longa data (que também assegura os pratos nos concertos dos Run the Jewels, projecto que mantém com El-P) e os Mighty Midnight Revival, coro gospel composto por Lena Byrd Miles, Alicia Peters-Jordan, Jori, Adonica Nunn, Troy Durden e Jordan Alyssa, que teve direito ao seu lugar na ribalta com uma apresentação na qual cada um puxou pelos seus dotes vocais.

Neste revival (cerimónia religiosa de intenso fervor nas congregações cristãs dos E.U.A.) de milhares de pessoas não foi necessária uma tenda e o reverendo Killer Mike conseguiu converter mais uns quantos fiéis. As suas rimas interligaram-se com o seu activismo sobre violência policial (sendo filho de um antigo agente da polícia tem um domínio destas questões que muita gente histérica não tem, ainda que a dedicatória a Young Thug seja muito discutível), sucedendo-se as malhonas: Shed Tears, Talk’n That Shit! e Scientists & Engineers, cujos versos que em estúdio couberam a André 3000 (afinal ainda vai ao microfone rimar) foram assegurados por Killer Mike ao vivo.

O filho da Dona Denise tem por paramentos uma farpela totalmente branca, qual Homem de Branco de Paredes de Coura e, em vez de vinho, elogia a ganza nacional e deixa o repto de um dia cá vir passar umas férias. E regressa ao activismo enquanto prelúdio de Something For Junkies, canção-aviso sobre não se cuspir para o ar que a desgraça do vício nos pode cair em cima e onde o flow de Killer Mike está ao rubro (tal como os baixos no PA).

Mais do que missa ou revival, o concerto do rapper de Atlanta foi uma lição de vitalidade (e longevidade, que vão lá vinte e um anos desde Monster) e de equilíbrio. No início, meio e fim foi o Verbo.

 

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

 

Tempo não houve para ver todo o concerto de Killer Mike, que uns sujeitos já nossos conhecidos se preparavam para fechar a nossa noite e submeter o público de Coura a uma sessão de porrad-, contundência sónica.

 

Model/Actriz – Palco Yorn

Vindos do grande revival de Killer Mike e da fé deste de que o Paraíso será para todos, fomos parar ao ritual infernal dos Model/Actriz, bandão de quem já conhecemos os superpoderes. São três da matina e o público ainda está sequioso, ainda tem tudo para dar e a tensão em forma de expectativa é palpável.

Logo para começar, uma certeza: Donkey Show é uma das melhores canções de abertura que para aí anda (não será exemplo único no festival) e Cole Haden o líder do ritual; pintando os lábios e bebendo um trago bem medido (como já tinha feito na Galeria Zé dos Bois), é o mestre-de-cerimónias disto tudo. Provocador e marialva e um tanto ou quanto arauto do sarcasmo hipster, não perde tempo em atirar-se literalmente ao público, batendo (ou andando perto disso) os recordes de distância do palco e de tempo de actuação no meio da plateia estabelecidos no ano passado por Tim Harrington, o Diógenes dos Les Savy Fav.

De saia e botas de salto alto, Haden, que passou de Batman na ZDB para autêntico deus dos mortos em Coura, passeia-se pelo palco em Mosquito, liderando petulantemente a carga do noise. Tudo isto seria um preâmbulo para a tal invasão da plateia por este cavaleiro andante sem cavalo (coadjuvado por um segurança que merece um louvor por ter mantido o cabo do microfone devidamente esticado), que tinha as almas penadas na mão – ainda que estas dominassem o ar, de tanto salto que deram.

Neste Reino de Hades dos Model/Actriz todos são fiéis súbditos, entoando os versos de “SUBMIT, SUBMIT, SUBMIT, SUBMIT” de Crossing Guard com gosto, entregando-se aos ditames de uma secção de ritmo notável e de uma guitarra que é uma lâmina implacável. E Cole “Hades” Haden? Anda novamente pelo público, em vários tête-à-tête para Instagram registar.

Ao contrário do que sucedeu na Galeria Zé dos Bois, Sun In ficou na gaveta, o que é perfeitamente aceitável dada a intensidade do concerto nas margens do Coura. Num submundo infernal que durou cerca de cinquenta e poucos minutos, os Model/Actriz fizeram bem mais do que picar um ponto e gravaram o seu nome na lista de concertos desta edição para mais tarde recordar.

 

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

 

Terminado com distinção este primeiro dia da edição de 2024 do Vodafone Paredes de Coura, o regresso a casa foi risonho. Não só porque a jornada foi boa, mas sobretudo porque o melhor ainda estava para vir.


sobre o autor

José V. Raposo

Partilha com os teus amigos