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Ao segundo dia do Vodafone Paredes de Coura 2024, duas certezas: o certame estava a correr bem e, depois do dilúvio do ano passado (e de muitos outros anos), a meteorologia era favorável. Para esta segunda jornada estava previsto indie rock (o bom) em dose quádrupla: um nome emergente (Deeper), duas certezas (Wednesday e Protomartyr) e a estreia de um nome fundamental (Sleater-Kinney). Foram estes os merecedores do nosso foco.
Tudo isto sem esquecer um nome que se propunha a bater os seus próprios recordes em Coura (L’Impératrice) e outro que finalmente veria realizado o sonho de menino de actuar no festival (Slow J).
Deeper – Palco Yorn
Quando se verifica que num suporte num dos lados do palco está uma Fender Jazzmaster e num suporte do lado oposto está uma Fender Jaguar, a previsão é a de que daí a momentos irá ter lugar a actuação de uma banda com assunto. Os Deeper, banda de Chicago (cidade onde o saudoso mestre Steve Albini fez carreira), são esse tipo de banda.
E nada como começar logo a bater nos cem decibéis como meio de homenagear Steve Albini e como manifesto de intenções sónicas. Numa canção como This Heat, que nos fala sobre um calor tóxico (como bem se viu, para muita gente trinta graus em Coura são piores do que trinta e cinco abaixo do Mondego), o volume e o entrelaçamento tenso de guitarras contrastaram com a descontracção dos Sababa 5 no dia anterior. Hoje as guitarras seriam rainhas em Coura, não havia volta a dar.
Não foi só pelo volume que os Deeper se distinguiram. Os interlúdios de ruído, esse clássico dos devotos do padre Albini, ressoaram pelo recinto, com especial destaque para aquele que serviu de prólogo a Willing. E nos interlúdios dos interlúdios, perdão, nas canções propriamente ditas, a banda andou por uma santíssima trindade post-punk, shoegaze e emo.
A banda é confiante até dizer chega e Nic Gohl parece que roubou as cordas vocais a Robert Smith, mas sem entrar em fórmulas de imitação básica dos The Cure. O post-punk dos Deeper é similar ao dos neerlandeses Rats On Rafts, de guitarras a que se poderia chamar angulares, mas isso seria um quase insulto, já que a designação está reservada precisamente para imitadores rascas do post-punk de oitentas.
Os acordes saíram bem esgalhados no estúdio e aqui vão pelo mesmo caminho (uma óptima V.M.C. para demonstrar este ponto), com um crescimento que já os atirou para a Sub Pop e para as primeiras partes dos Depeche Mode. Num concerto que merece destaque, não só os Deeper não foram ao fundo como demonstraram que têm um fundo distinto (salvo seja).
Saídos do palco Yorn, um pequeno périplo pelo recinto deu para constatar a enchente no palco Vodafone para ver os Gilsons, banda composta não por adeptos do Gil Vicente, mas por um filho e netos de Gilberto Gil. Espalharam simpatia e algumas canções agradáveis, apropriadas para os tais fins de tarde soalheiros de Coura que tantas vezes pedem mais disto do que pancadaria no pit.
Depois de uns quantos minutos de boa onda, era boa hora para regressar ao palco Yorn para (re)ver os Wednesday, banda cada vez mais distinta.
Wednesday – Palco Yorn
Apesar de nem sequer ser quarta-feira, não dá qualquer azar ver uma banda chamada Wednesday a uma quinta-feira. A banda de Asheville (Carolina do Norte), que começou como projecto a solo da vocalista e guitarrista Karly Hartzman, cresceu e tornou-se numa banda distinta, de camadas que se vai descobrindo ao longo da actuação.
Ainda cedo no concerto somos brindados com uma camada escorreita de grunge a pender para o lo-fi chamada Toothache, a que se segue o desvendar de nova camada, Chosen to Deserve, esta já de Rat Saw God, um dos melhores álbuns de 2023. E é aqui que as raízes (e a distinção) da banda se começam a revelar.
Não falamos apenas da pergunta de Hartzman sobre se gostávamos de country (SIM) ou dos bem semeados mullets que Hartzman, Ethan Baechtold e Xandy Chelmis ostentam (e que lhes garantiriam emprego numa empresa de camionagem); referimo-nos, isso sim, ao contributo da guitarra pedal steel de Chelmis, para nós o principal elemento da originalidade dos Wednesday. Quando o metal desliza pelas cordas e solta o glissando, a banda de Asheville passa de rock alternativo para o honky tonk – vai de Braid e Pavement para Uncle Tupelo ou Drive-By Truckers.
E uma menção da banda a estes últimos não podia faltar, numa soberba versão de Women Without Whiskey, mantendo-se o brocardo de que, depois de demasiada coparia, a manhã é uma cabrona de braços abertos e a noite uma mulher inalcançável. Se já situámos sonicamente o grupo entre o rock alternativo e a alt-country (uns The Band arraçados com Silver Jews, com uma hipertrofia contemporânea), no que concerne ao conteúdo das letras é quase toda a tragédia contemporânea dos Estados Unidos: copos a mais, amores trágicos, crise dos opiáceos, depressão e demais desolação sulista ianque.
Passe o chavão, quando se pensava que o concerto não podia ficar melhor, eis que foi isso mesmo que aconteceu, numa Lei de Murphy ao contrário, mal soaram os primeiros acordes de Quarry, a melhor canção da banda. Uma letra que tem lá no meio um hipotético episódio de The Sopranos (uma trapalhada com drogaria de Chris Moltisanti e Adriana La Cerva) e todo o caldo de alt-country distorcido de Wednesday, aqui ampliado para toda a maralha do pit e do crowd surf – que este ano se lembrou de se sentar e desatar a remar imitando Fernando Pimenta. É este o “melhor público da digressão”, segundo a banda.
Se houver ouvidos, justiça e criatividade nas gerações futuras, os Wednesday vão deixar escola. Em Coura já deixaram boas memórias.
Se ainda estamos no campo das hipóteses sobre se os Wednesday vão ou não deixar escola, no palco principal iriam subir ao palco Carrie Brownstein e Corin Tucker, membros das Sleater-Kinney, banda que faz parte de uma escola e que ajudou a construir outras.
Sleater-Kinney – Palco Vodafone
Fonte de inspiração para muito boa gente de muito lado, as Sleater-Kinney começaram no manifesto feminista em três acordes chamado riot grrrl e transitaram para o rock dito alternativo (duas escolas que têm a marca da banda), sem nunca perderem o pé político nem a capacidade de trabalho – só na sua primeira vida editaram sete álbuns numa década. Oriundas daquilo a que se pode chamar a Escola de Olympia (a quantidade de chuva deve dar azo a um raiva punk descomunal, só pode), cidade do estado norte-americano de Washington que deu ao mundo várias bandas influentes, são um dos nomes maiores não só da cidade como também daquele estado, que é de top 5 em matéria de música popular alternativa de renome produzida nos Estados Unidos.
Porém, só agora se estreiam em Portugal, em condições materiais ideais (haverá melhor palco para elas, salvo o do Primavera Sound Porto?) mas longe disso nas condições de saúde: uma infecção pulmonar de Carrie Brownstein levou ao cancelamento de vários concertos nas últimas semanas. Certo é que Brownstein e Corin Tucker estão ali à nossa frente, neste décimo ano de reunião.
Uma confissão da nossa parte: salvo o novíssimo Little Rope (cuja capa foi a base das projecções em vídeo), nenhum disco pós-reunião nos convenceu. Mais ainda, a saída de Janet Weiss, uma das nossas bateristas preferidas, provocou um rombo enorme no som e química da banda – nada contra Angie Boylan, que cumpriu suficientemente, mas Weiss ajudou a catapultar as Sleater-Kinney para outros patamares (sem esquecer as Wild Flag, supergrupo de breve existência que manteve com Brownstein no início da década passada).
Acabou a inferneira da espera por um concerto de Sleater-Kinney por cá ao começar Hell, do aludido Little Rope. Corin Tucker começa a mostrar a sua voz de Poly Styrene a várias dimensões (mas saberá fazer as duas vozes de Modern Talking, como o mestre Manuel Almeida? OSS!), devidamente acompanhada pelo resto da banda, incluindo Carrie Brownstein, que nos relembra que é uma guitarra-ritmo de alto coturno.
À quarta canção, finalmente uma incursão pelo auge da banda, isto é, pelo seu último trabalho antes da separação, The Woods (2005); The Fox (oi) é uma montra do rock independente que fez das Sleater-Kinney uma referência do género. O berreiro roqueiro fez-se sentir como estávamos à espera dele, não obtendo, contudo, uma reacção cabal do público; o que é incompreensível, porque uma plateia de Coura até entre canções faz crowd surf. Falta marcada para quem não fez o trabalho de casa.
Ao contrário do que sucede com tanto grupo, o material recente de estúdio das Sleater-Kinney não entusiasma nem levanta grandes ondas, até porque a execução não passa de competente, tendo-se desvanecido o entusiasmo inicial da actuação. É preciso voltar a The Woods e a Jumpers para que a banda se lembre da sua própria grandeza e toque em conformidade. Brownstein é um dínamo: salta, rodopia, manda riffalhada para todos os lados (palmas para Dig Me Out) e, claro, junta a sua voz à de Tucker ou canta sozinha. Depois da infecção que levou a cancelamentos há poucas semanas, parece agora que apanhou Courite aguda.
Por seu turno, Tucker parece ter passado metade do concerto a fazer um frete, quase alheada dos acontecimentos e em modo piloto automático. Ouvimos-lhe o vozeirão que era meia identidade da banda e alguns pormenores de guitarra, mas o esforço para retomar a química e o entrosamento com Brownstein só se notou quase no final do concerto. Mensagens pela libertação da mulher e de outras causas? Não nos lembramos de nenhuma, é como se essa dimensão da banda tivesse ficado em 2005 ou fortemente diminuída nesta sua segunda vida – dizemos nós, que desprezamos proselitismos de artistas, mas que reconhecemos quando estes são importantes na definição identitária de uma banda.
Chamar “desilusão” ao concerto é demasiado forte para o que se passou. O que as Sleater-Kinney deram em palco não fez, isso sim, jus ao seu legado, bastante pesado e que merecia um outro fulgor, até porque já vimos bandas que deram um litro extra só por se estrearem por cá. As limitações de tempo e de não serem cabeças-de-cartaz não servem de desculpa à banda; também o público leva um puxão de orelhas, já que passou de ser tão lesto a armar o mosh para um bando de múmias.
Ilustramos este texto com uma fotografia de apresentação das Sleater-Kinney mais porque a imagem foi bem sacada (e com maior brio do que o concerto) do que pela qualidade do espectáculo. Parafraseando uma canção da banda: sing it like you mean it.
Depois desta estreia, um regresso deveras antecipado por muitos: L’Impératrice no palco Vodafone. Depois do fenómeno que foi o seu concerto em 2022, banda e público tinham ganas de repetir a dose. E conseguiram-no, pelo que, segundo o que se conhece em matéria de práticas de contratação de artistas por parte dos nossos organizadores, o triplete não tardará.
Também no palco principal de Coura foi realizado um sonho de menino: o de Slow J ali actuar. Ainda a promover Afro Fado (2023), provou o que já pensávamos: o conceito do disco é promissor e provoca água na boca, mas a execução em estúdio e ao vivo redunda num aborrecimento kizombeiro que deixa o conceito em saco roto. Ainda assim, muita gente presente para ver a referência recente do hip hop nacional.
Houve ainda tempo para picar o indie rock genérico dos irlandeses Sprints. Por esse mesmo motivo ficámos pelo “picar” e não pelo “ver”.
Ainda antes de Slow J tocaram, no palco secundário, os campeões do segundo dia do festival: os detroitenses Protomartyr. E foi a trautear algumas das suas malhas que fechámos o dia a caminho do descanso no poiso, que o terceiro dia seria longo, bem longo – e ainda bem.