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Rumo à segunda metade deste Vodafone Paredes de Coura 2024, o balanço é positivo. E mais positivo seria a partir do terceiro dia.
Logo para começar, o décimo DJ set do glorioso colectivo no Xapas Lounge. Cinco horas e quarenta e cinco minutos com as malhas que todos querem ouvir mas têm vergonha de admitir, contando-se com a presença de um convidado especial, Qual É O Mal Soundsystem. Mais um evento deste olímpico brat summer e mais um ano de tradição.
Dia muito desigual na correlação horários-motivos de interesse, dado que os concertos com assunto ou eram muito cedo (seis ou sete da tarde) ou só a partir da uma da manhã, é possível dizer-se que o horário nobre substituiu o after, visto que só a partir das 00:55h (já de 17 de Agosto!) começou verdadeiramente a música no seu anfiteatro natural. Valeu bem a pena, porém.
Entrados no recinto, uns quantos minutos para picar a actuação de Girl In Red, projecto da norueguesa Marie Ulven Ringheim, que se disse acometida de jet lag. Alguns riffs com piada não conseguiram abafar um arrabalde de lugares-comuns identitários que só gritam falta de ideias. Veredicto: indie rock chatinho para zoomers. Felizmente que havia uma sequência do caraças à nossa espera.
Beach Fossils – Palco Yorn
A banda de Brooklyn foi, nos seus anos formativos, um projecto a solo de Dustin Payseur. E esses anos formativos de Beach Fossils (2009-2011, por aí) coincidiram com a eclosão daquilo a que se pode chamar neo lo-fi (outros chamam-lhe lo-fi dream pop, categoria algo limitativa). Há coisa de catorze anos, os Beach Fossils estavam na vanguarda dessa lo-fi, conjuntamente com os Wavves, Times New Viking, Wild Nothing e Harlem, entre outros. Enquanto parte daqueles se desintegrou graças à pressão do hype ou por nada mais de jeito ter para dizer, os Beach Fossils foram trilhando o seu caminho, com uma mão-cheia de registos de qualidade, incluindo Bunny, discão do ano passado.
E foi com Don’t Fade Away, uma excelente montra do que dissemos acima, que o concerto dos nova-iorquinos começou. Não se terem afastado muito da matriz lo-fi é uma das forças da banda e as variações sónicas (como soarem agora a algo situado entre Real Estate e DIIV) caem bem. Payseur nasceu com o dom de saber encadear os acordes certos e é superiormente coadjuvado por Tommy Davidson e Jack Doyle Smith – as guitarras e o baixo vão mudando de mãos mas a mestria (sim, até o lo-fi a tem) continua lá, estribada em bom uso dos pedais de delay e de chorus.
Seja com Sugar (de Somersault, 2017) ou What a Pleasure (do EP homónimo de 2011), a linha evolutiva do jangle dos Beach Fossils dá origem a um concerto fenomenal de tão simples. Desfazendo-se em agradecimentos por esta estreia entre nós, Payseur (que até os sogros trouxe) e Davidson puxam pelo público e em Sleep Apnea exigem escuridão em palco e pedem as nossas luzes – toda a gente a viver no momento e uma data de telemóveis à vista. Concerto mais boa onda não houve nesta edição de Coura.
Uma actuação que começou com o presente dos Beach Fossils chegou ao fim com o seu passado mais distante através da faixa que nos fez fãs da banda: Daydream. Canção que saiu do quarto de Payseur para o palco de Coura, foram dois ou três minutos de prazerosa nostalgia e duas voltas à chave na fechadura do espectáculo.
O lo-fi não tem mesmo prazo de validade.
Toca de fazer mais uma piscina (ao terceiro dia perdemos já a conta) para o palco Vodafone, onde uma enorme massa humana esperava pelos Idles, há já vários anos ídolos da torcida nacional e garante de um mosh pit de diâmetro considerável.
Idles – Palco Vodafone
Chegados a 2024, os Idles, banda de Bristol que desde Brutalism (2017) anda na frente das refregas (sónicas e contra outras bandas), viram-se perante um entroncamento artístico: continuarem a ser uma banda de punk convencional mas consistente ou explorarem sons de outras paisagens. Foram pelo segundo caminho e editaram este ano Tangk, álbum que em várias canções é radicalmente diferente dos Idles que conhecemos, impelindo a outro tipo de danças menos viscerais. Ainda que seja um disco com alguns tiros ao lado, é uma aposta com eles no sítio e que revela o espírito adogmático do punk – o lado mais interessante deste, diga-se.
E foram os Idles ali buscar IDEA 01 para dar início às hostilidades. A falsa calmaria daquela canção deu lugar a Colossus, malhão descomunal que é o verdadeiro começo de um concerto da banda inglesa: o crescendo de raiva e de terapia das trevas do passado até à quebra que leva Joe Talbot, vocalista emérito do caos, a fazer a segunda aparição de Moisés (a outra foi no primeiro dia) neste festival e a exigir que o público se dividisse desde as grades até ao topo do recinto, para que aquele, no retomar da pedalada, colidisse no mais violento abraço destes dias, algo que fez com todo o gosto.
Os Idles não tiram o pé do pedal há anos e muito menos agora, o sprint é com eles e, ainda que seja quase um clone do concerto de há dois anos ali mesmo, é sempre bom ver algo como Lee Kiernan a fazer crowd surf enquanto cumpre com as exigências do seu pelouro nas guitarras. Não há tréguas, seja com Gift Horse, Car Crash ou Mother, todas elas de diferentes alturas da carreira da banda; a dureza prometida tacitamente pela banda é cumprida. Mudam-se os tempos (das canções) mas a vontade de pancadaria no pit continua. O pit está afinadíssimo na sua anarquia e o campeonato de remo espontâneo, já marca distintiva desta edição, mantém-se com todo o vigor.
Esta é a parte boa do concerto. A má, bem, não é propriamente novidade.
Se a intensidade da banda é sustentadamente crescente, o seu proselitismo político ou, por outras palavras, histeria pseudo-ideológica é o que mais tem crescido desmesuradamente por ali. E tornou-se insuportável.
Mais vale os Idles cumprirem os seus ditames contra a masculinidade tóxica (Never Fight a Man with a Perm no topo, sempre) do que Joe Talbot ladrar repetidamente “FUCK THE KING!!1” (deixem isso para a letra de Gift Horse) num país cuja monarquia acabou em 1910, para mais que Carlos III está bem longe de um Henrique VIII ou de um Carlos I, entre outras cavalidades que revelam zero reflexão e muita ignorância em matérias extremamente complexas. E isto vindo de um escriba que gosta de cumprir o seu dever (e exercer o seu direito) de eleger o chefe do Estado (neste momento o órgão encontra-se vago por falta de categoria do seu titular para o seu exercício) por sufrágio directo e universal. Manquem-se, incluindo aqueles que entusiasticamente aplaudiram que nem ovelhas as imbecilidades de Talbot.
Os Idles não são os Crass (FELIZMENTE, em termos musicais) nem os Eskorbuto (banda mais honrada do que eles? DIGAM UMA!) para se meterem com estas idiotices. Nos seus melhores momentos, a raiva de Talbot, como um Daniel Plainview do punk contemporâneo, tanto dá para ser um vocalista de topo ou um demagogo sem noção. Numa era em que se precisa de mais razão do que coração, o exemplo que os Idles dão (que se aproxima perigosamente do plástico e da palhaçada) é péssimo. Não chegam à execrabilidade de Roger Waters, mas também fazem má figura.
Nós também vemos as notícias, nós também pensamos sobre estas questões e nós lemos (bem mais do que as bandas) e temos formação sobre os problemas da política internacional. Não pensem por nós e toquem e calem-se. Uma banda como os Idles é mais do que entretenimento mas menos do que um oráculo. Ponto final, parágrafo.
Tudo isto é uma verdadeira pena, como diria Camilo José Cela. O mais recente trabalho dos Idles é um passo arriscado que dá certo e, no que mais nos interessa de momento, continuam a ser uma das melhores bandas ao vivo desta vida.
É impossível ficar indiferente à parte estritamente musical de um concerto deles e, dizemos com toda a convicção, uma pessoa não se pode dizer fã de rockalhada e não gostar de uma canção que seja do grupo.
Estando já ao nível dos The National no que diz respeito a visto gold de bandas, é caso para dizer que a próxima vez dos Idles por cá não tardará muito e que há 99% de probabilidades de vir a ser um concerto de qualidade. Só se pede que certas coisas fiquem na mala.
Mdou Moctar – Palco Yorn
Quando as grades de um palco se enchem de zezaria (pessoas dadas à fritaria) é sinal de que vem aí concerto de algo fora da caixa ou de que se está já em hora de after. No caso da edição deste ano, foi mesmo a combinação de ambos: eram três e pouco da manhã e vinha aí Mdou Moctar, o tuaregue herói das guitarras.
O exercício intelectual a fazer antes de se desfrutar de um concerto de Moctar é não ligar a críticas aos seus discos que sejam manifestos político-culturais, em especial se o autor for norte-americano. E porquê? Porque é impossível, no actual clima político e cultural, ler uma crítica que se foque mais na música e no contexto de Mdou Moctar e dos elementos nigerinos da sua banda e menos em mandar bitaites sociológicos pós-modernos, em especial se em forma de farpas auto-flagelantes contra o Ocidente.
É relevante o contexto de Mdou Moctar? É, sim. Oriundo de uma família que não queria que este fosse músico (uma avó esqueceu-se de uma guitarra sua no telhado da casa ao ponto de esta ficar em bocados), construiu de raiz a sua primeira guitarra e foi compondo e tocando até ser descoberto por Christopher Kirkley que, hipnotizado pelo som da guitarra, editou-o e fez dele estrela do cinema independente numa rábula a Purple Rain de Prince. Concomitantemente, enquanto Moctar (tal como o compatriota Bombino, que já passou por Coura) se tornava num vulto musical, as sortes do Níger enquanto país vinham por aí abaixo.
Depois de ser colónia francesa até 1960, o país enfrentou uma sucessão de golpes de estado e uma rebelião tuaregue entre 1990 e 1995 (que também ocorreu no vizinho Mali), estando sempre na situação de país-fantoche aos olhos de potências como a França e os EUA, dadas as suas reservas de minério, em especial o urânio. A esperança na estabilização com uma nova constituição e uma transição pacífica desvaneceu-se com mais golpes de estado – o mais recente em 2023, que espoletou mais uma crise, a saída do Ocidente de cena e a submissão do país aos ditames dos genocidas de Moscovo e do seu grupo Wagner, perante sanções ineficazes por parte da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental.
Neste cenário, não admira que os dois (incríveis) mais recentes álbuns de Mdou Moctar – Afrique Victime (2021) e Funeral for Justice (2024) – se centrem no calvário que o seu país atravessa. Perante a tragédia, Moctar e a sua banda, composta por três magníficos edificadores do ritmo (Ahmoudou Madassane na guitarra-ritmo, Mikey Coltun no baixo e Souleymane Ibrahim na bateria), reagem com uma imparável e irresistível fúria.
Como sucede com os maiores (e com excepção para os certinhos), as canções ganham uma dimensão ao vivo que faz das versões de estúdio anãs. Funeral for Justice logo a abrir é sacanagem, sobretudo se tocada como foi.
Moctar não tem uma mão dominante, apesar de esquerdino – varia entre uma melodia quase de balada e o riff que é mais metal do deserto do que blues. Os cânones tradicionais (bem como as afinações) pouco ou nada dizem aos guitarristas tuaregues e esse é o seu trunfo. A assouf (os tais blues do deserto) dispensa o metrónomo, mas exige ensaios para uma prática de alto nível como aquela a que se assiste.
De outra maneira não seria possível tocar canções como Takoba ou Chismiten com a intensidade desejável. Em tudo o resto, Moctar sabe que tem uma banda fiável (Ibrahim é quem coloca as mudanças neste veículo desgovernado) e bem pode mostrar todo o seu virtuosismo, seja no meio enquanto canta em tamasheq (variante da língua tuaregue) ou na beira do palco, com um sorriso e um gingar e os dedos a produzirem faíscas sónicas saídas do PA.
Mdou Moctar é bem mais do que um Eddie Van Halen do deserto; para quem estiver interessado em aprender linguagens diferentes na guitarra eléctrica é um nome fundamental. Diz o que tem a dizer, na música ou na política, sem precisar de mais, e o público responde não ficando quieto um segundo. Até se pode não perceber uma palavra de tamasheq, mas as guitarradas são percebidas com clareza por todos.
Não sabemos se a justiça morreu, mas Mdou Moctar está bem vivo.
Não foi preciso sair-se do sítio, que após o fogachal de Mdou Moctar seguir-se-iam os Tramhaus, uma das melhores bandas de rock da Europa nos dias que correm e que, como tal, merecem umas linhas só para eles. Findo o concerto destes, eram quase seis da manhã, tarde e a boas horas depois de um dia atípico em termos de horários mas que compensou nos concertos. Acabámos de ver o futuro das guitarras com os Tramhaus e reina o optimismo. Começa, contudo, a sentir-se a depressão pós-festival, que só falta mais um dia de campanha courense antes de se rumar a Sul.
Por falar em optimismo, muito dele deve-se à quantidade de concertos para ver no quarto e último dia do Vodafone Paredes de Coura. Tal como uma sessão de provas de atletismo nos Jogos Olímpicos, haveria muita competição e muita medalha para atribuir. A eles.