Reportagem


Wolf Eyes + Gonçalo Almeida

Honras de Estado para o noise show dos Wolf Eyes.

Galeria Zé dos Bois

07/11/2023


Terça-feira, dia 7 de Novembro de 2023, 14:30 h. O Primeiro-Ministro de um governo saído de maioria absoluta parlamentar apresentou a demissão através de comunicado, desconstruindo o panorama político nacional. 23:00 h do mesmo dia: os Wolf Eyes, titulares de órgão de soberania da música experimental norte-americana, sobem ao palco da Galeria Zé dos Bois para emitirem cerca de uma hora de comunicado, desconstruindo o panorama do noise.

Considerando o seu quarto de século de actividade, os Wolf Eyes são já uma instituição do experimentalismo norte-americano. E porquê instituição? Porque a sua obra ou, tratando-se de um projecto de noise/experimental, a sua desconstrução tem feito escola, perfazendo um repositório de lições vertidas numa data de edições. E actuações.

Mas, ao contrário de muita gente desta latitude sónica, os Wolf Eyes não se levam muito a sério. Executam em estúdio e ao vivo sem tretas, mas a sua presença na Internet é a da comédia: com a História, as facções, as bandas e os movimentos da música popular das últimas décadas, em particular dos anos oitenta para a frente – ou não fosse a escola DIY do hardcore da velha guarda e consequente metamorfose no rock alternativo parte do ADN da dupla.

Intitulada Inzane Johnny, a conta de Instagram tanta devoção gerou que por cá também se fez uma congénere discipular, Inzane João, contando ambas com sub-contas onde figuram as mêmes “rejeitadas” nas principais. Tudo isto Internet de altíssimo nível e vacina contra a normice. E o Jeff Tweedy é MESMO sósia do César Mourão.

Como a noite era de exploração, coube a abertura da lide a Gonçalo Almeida, contrabaixista oriundo de Lisboa e radicado em Roterdão, membro fundador do Hydra Ensemble e que colaborou com nomes como Rodrigo Amado, vulto do jazz português contemporâneo, ou Fred Lonberg-Holm. À semelhança de Margarida Garcia (esta mais no contrabaixo eléctrico), Almeida propõe-se criar e desenvolver novos horizontes tímbricos no contrabaixo, sendo suficientemente prolífico e curioso para ir desbravando e questionando.

Com autoridade, Almeida prova logo ao início do concerto que a sua abordagem é a de tratar o contrabaixo como um epicentro de descoberta. Sobriamente, vai desafiando o instrumento e altera-lhe a natureza; ora transforma o contrabaixo num instrumento de percussão (como faz aos saxofones Colin Stetson), ora desfia drones.

Pelo que ouvimos, a dissecação (Vesálio botaria joiinha) do contrabaixo pelo contacto do arco com as cordas relembra-nos Norberto Lobo no monumental Fornalha. Almeida curva-se sobre o contrabaixo e embrenha-se na onda. Onda essa de um mare incognitum para onde avançamos guiados pelo contrabaixo, pedal e amplificador, com o arco transformado em espada da luta pela glória da criação de futuro acervo de sons. A sua expressão revela o esforço de levar o timbre a desafiar o éter, com toda uma linguagem a desenvolver-se à nossa frente.

Em cerca de quarenta minutos, Gonçalo Almeida ganhou o jogo das tensões ao contrabaixo e deu à estampa mais umas páginas da futura linguagem daquele instrumento, dizemos com satisfação.

Não demorou muito até estar tudo pronto para receber os maiorais do noise, já afeiçoados à casa e que poucos minutos depois das onze da noite começaram a sessão de culto do estranho e do exploratório. Fez-se, pois, login no mundo dos Wolf Eyes.

Após um crescendo de poucos minutos, Nate Young ataca com distorção, calmamente coadjuvado por um John Olson de pose professoral. Torna-se evidente que ninguém soa como a dupla. Amplamente imitados, raramente igualados. E livres, sobretudo livres.

Se lhes dá na telha para irem escrevendo o Evangelho do Noise como lhes dá na real gana, nesta assembleia do culto (com experimentalistas nacionais de renome a assistir) cada um ora como lhe dá na veneta: abanar a cabeça, os ombros, os joelhos – ou registar o momento na câmara ou no telemóvel, como testemunha de uma espécie de milagre. A paleta da dupla reverte para uma multitude (umas vezes subtil, outras difícil de processar no imediato) sónica, do noise à ambient, passando pelo dub e por drones.

Da mesa do noise (a estrela mais recente dos mêmes) de Young sai a distorção do nosso contentamento, em tabelinha com a instrumentação mutante de Olson, cujos sons transformaram o aquário da ZDB num ashram de noise. Journey to Detroitananda, diríamos.

Uma jornada de evocação do estranho, do agreste, e, não esquecer, dos santos deste culto: os Steely Dan, as mêmes que transformam Phil Collins em Ian MacKaye (e vice-versa), de Blood Incantation ficarem desiludidos connosco depois de nos apanharem no pós-noitada, de um chapéu à cowboy valer ser-se membro de Swans e, claro, do sacrossanto noise show.

Voltando aos acontecimentos, nem tudo é contemplativo. O mais recente trabalho de originais do duo, Dreams In Splattered Lines, é uma colagem de massacre electrónico e de burburinho nos arranjos que bem podia ser um pesadelo de Mort Garson. E é em palco que a tensão sonora se desenrola; a maquinaria e os berros distorcidos de Young contra a feitiçaria de Olson, que monta e desmonta os emblemáticos sintetizadores de sopro (incha, keytar), geradores de hipnose, de anti-melodia e de texturas raras.

O corolário é uma bizarria visualmente infernal (mercê das luzes vermelhas e do fumo), que soa algures entre um dub transgressivo e um noise show como se quer – um cruzamento entre La Monte Young, Merzbow e Carmine Coppola em Apocalypse Now. A própria obra da banda reflecte quiçá a sua maior influência: o cenário pós-apocalíptico da Detroit dos anos noventa e zero (com igual efeito sobre os conterrâneos Protomartyr). O que sai do PA no Bairro Alto pós-gentrificado foi gerado em caves, garagens e buracos de uma cidade em desagregação, que por seu turno ajudou à desconstrução livre e caótica do tandem experimentalista.

Emocional e sonicamente complexas, as composições atingem a certo ponto um clímax sónico como Raoul Duke à beira de atirar o gravador de cassetes para a banheira ou, mais apropriadamente, para o aquário pejado de doutores Gonzos. A lenda de Wolf Eyes em todo o seu esplendor.

A liberdade criativa da dupla do Michigan nem sempre é facilmente digerível, mas nunca lhe falta pujança. Atrevida a espaços, agressiva quando a coisa ferve, proporcionou uma lição de experimentalismo a quem lá esteve, sem adornos nem pretensão. Agradecimentos sucessivos de Nate Young ao público e organização e fizemos logout do mundo dos Wolf Eyes.

Na noite em que se soube que hidrogénio e lítio dão reacção em cadeia (não reclamem da piada, que não é nossa), houve noise, mesa e melomania lavada no aquário. Uma benfazeja reunião da família Inzane ou uma psyop? Como vos aprouver, que assim se faz a lenda dos Wolf Eyes.

Honras de Estado para eles, hoje e sempre.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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