Reportagem


Yard Act

A utopia fica mesmo bem aos Yard Act.

Lisboa Ao Vivo

08/04/2024


© Ricardo Almeida

A utopia é combustível para muita coisa neste mundo, desde ideários (e seus corolários), guerras e artes. No caso concreto da música, há quem contemple construir uma carreira baseada na procura de uma utopia (nem que seja num disco com a palavra no título), de ir mudando de pele em vez de ceder ao comodismo, em particular se o sucesso for garantido logo às primeiras investidas, como foi o caso dos Yard Act, estreantes em Lisboa mas com uma passagem nem há um ano pelo Primavera Sound Porto.

O grupo de Leeds foi formado por mera piada por James Smith (vocalista e letrista) e Ryan Needham (baixista), inicialmente como um veículo de post-punk mais convencional, das famigeradas (de tão imitadas e formulaicas que se tornaram) guitarras angulares e do negrume. Sucedeu, porém, que o pós-Brexit e a vida urbana contemporânea têm demasiado sumo para espremer – misturados com o atrevimento sónico da banda e com a acidez e o humor das letras de James Smith.

A banda é bem mais do que acompanhamento musical para as letras de Smith; é uma paleta distinta de braço dado com versos mordazes sobre este anos de domínio dos ecrãs sobre a verdade, da instabilidade pessoal e digital e de demais precariedades e atitudes consubstanciadas em hashtags e estrangeirismos tantas vezes bacocos. Com o quarteto fortalecido com um coro feminino (Lauren Fitzpatrick e Daisy Smith), o que se assistiu na sala lisboeta foi tudo menos um quiet quitting.

Numa digressão designada The Dream Job Tour, destinada a promover um (belíssimo) álbum chamado Where’s My Utopia?, tudo esteve interligado: o emprego de sonho de Yard Act deve ser a busca de uma utopia. Note-se que o grupo é oriundo de um país que viu no Brexit uma utopia político-económica colectiva, baseada em pressupostos extremamente discutíveis, ainda que traduzindo a vontade do povo.

Com um resultado (ao momento) longe de satisfatório para o próprio Reino Unido, que apesar de continuar a valer por si enquanto país soçobra em vários domínios (e isto vindo de um soberanista), em particular numa sociedade que não reganhou valores nenhuns com a saída da União Europeia – e se a sociedade está doente aí estão os post-punkistas para cantarem o desencanto.

Não estavam os lads de Leeds sozinhos nesta demanda. A abrir as hostilidades esteve Murkage Dave, nome artístico de David Lewis, trovador urbano londrino e fundador do extinto colectivo multidimensional Murkage. No escuro chegou, no escuro colocou uma cassete num ghetto blaster e a batida no telemóvel e por um caminho reminiscente de uma neo-Northern Soul deu início a quarenta minutos de boa introdução da noite.

Logo em Car Bomb ficou provado que não se precisa de grandes arranjos para a melodia sobressair e, no caso, foi a voz de Murkage Dave, arauto do sarcasmo, a lamentar que “everybody wants something, but they ain’t wish me no luck”, como quem tem dez mil colheres mas só precisa de uma faca. E para além das necessidades expressas na letra, lançou entre canções uma outra necessidade para Londres: “vocês têm algo que nós não temos [em Londres], o Sol!”

Expressivo, cantando as dores da vida no cimento armado londrino, da fuligem no metro e de amores pós-contemporâneos desavindos, tudo regado pela sempiterna chuva britânica, não precisou de muito para prender o público. Para prender a atenção dos Yard Act (a quem agradece profusamente) também não foi preciso grande coisa, que segundo o próprio bastou uma mensagem privada no Instagram e o resto está à vista.

E também não se prendeu nos samples e nas batidas: ouvimos dubstep, grime, um Mark Morrison aqui, um Craig David ali e um Dizzee Rascal acolá. Destes últimos voltaremos a ouvir falar não tarda.

O relato de Don’t Move To London It’s a Trap é uma fenomenal monografia da ennui pós-contemporânea: a apatia enterrada num cosmopolitismo alcoólico do Prosecco, das DMs para apagar, da renda para pagar e dos frangos que já se virou. As olheiras, o fígado destroçado e a conta a zeros não vêm do nada num neo-kitchen sink drama de que John Osborne não desdenharia.

Londres até pode ser uma armadilha, mas é uma senhora que merece ser defendida. Ao nosso lado, depois do queixume de Murkage Dave de que a cidade está cara, sai um “Londres é um buraco!” de outra voz britânica, recebendo em resposta um “calma, que estás a ir longe demais, meu!”. Não se metam em cuecas que não vos servem.

A simplicidade da actuação teve por remate uma canção-homenagem peculiar, dado o destinatário: ele próprio. Em Murkage Dave Changed My Life, Lewis traça o seu percurso de jovem inadaptado do East End londrino até à faculdade em Manchester, com Craig David, Dizzee Rascal e os Oasis pelo meio.

Aplausos para uma actuação que bem podia ser uma terna palmada no ombro após a aprendizagem de várias lições de vida. Mas não seria a despedida de Murkage Dave daquele palco, porém.

Com pontualidade quase britânica entravam em palco às 22h17 os Yard Act. O agora septeto aqueceu os motores com a melodia e o downtempo de An Illusion e descolou com uma impressionante sequência incendiária de Dead Horse e When the Laughter Stops.

Nesta, o coro assume papel igualitário com o de Smith numa revolução de palco como a dos Talking Heads em Stop Making Sense. E tanta revolução houve que o poder instalado do vocalista foi deitado abaixo e flagelado pelo coro, naquilo a que se pode chamar de Martírio dos Olivais. O mártir James Smith por ali ficou estatelado junto a um monitor de palco, possivelmente contemplando que raio de utopia de PA gritante é esta.

E agora, algo completamente diferente. A banda traz uma roda da sorte (RIP Ruth Rita) até ao palco, para sortear qual seria a canção do primeiro EP da banda, Dark Days, a que teríamos direito. E como o povo é quem mais ordena, Smith chama ao palco um elemento do público para dar início ao procedimento.

Neste sorteio calhou Ned, um lad também oriundo de Yorkshire (se este era uma personagem, então estava bastante bem esgalhada) e que mais parecia um misto de Bill Walton com o adolescente da voz estridente dos Simpsons – que durante segundos conseguiu sacar ao público um cântico de apoio à sua região (“Yorkshire! Yorkshire!”). Já meio bebido, Ned é um espécime perfeito do lad on tour, o indígena britânico saído das suas ilhas para andar na farra ou na bola, com comas alcoólicos, violência na noite, nudez pública, cabeças enfiadas em fontanários e detenções associadas para dar trabalho aos tablóides – diga-se que o nosso Ned não fez nada disso e divertiu-se como todos nós, não chamem já a Correio da Manhã TV.

Na roda da sorte saiu Peanuts, que não foi peaners com acordes. A dada altura, Smith esqueceu-se da letra no monólogo/quebra da canção e parou tudo por ter dúvidas sobre um verso. Em boa hora o fez, porque um verso como “it takes real guts to fake being nuts and it takes real nuts to break fake guts” é para ser gravado na pedra.

Em altura de eclipse solar, o único eclipse que se viu foi o de as versões ao vivo das canções dos Yard Act eclipsarem as versões de estúdio. Ainda que a banda procure construir a sua utopia sónica, estamos perante uma base post-punk à moda dos The Pop Group, Scritti Politti, A Certain Ratio ou The Fall (caramba, Smith até partilha o apelido com o saudoso Mark E. Smith) – e tudo isto em apenas um EP e dois LP.

Voltando ao emprego de sonho dos Yard Act, Dream Job é “a” montra da actual fase da banda. O que se viu foi a banda a construir uma estrutura sónica à Happy Mondays do século XXI e Smith a rosnar sobre politiquice de escritório (“so lay waste to your superiors to lighten the mood or kowtow to your inferiors for fear you’ll look rude”) com um flow invejável revelador de um parentesco distante (ou não existente) em sangue, mas artisticamente próximo de Yeats, Shaun Ryder (obrigatório recordar Tony Wilson, que isto é post-punk, caramba) e John Cooper Clarke. Bem-vindos ao futuro, a paranóia fica-vos bem.

E de The Overload, longa-duração de estreia, mais nada? Pelo contrário, tudo. Uma emulação dos Blur na sua fase mais lads on tour (os lads com cérebro operacional de Parklife, portanto) em Witness (Can I Get A?) e uma imensa interpretação da canção homónima do disco, com uma textura vocal musculada mercê do coro, da guitarra de Sam Shipstone e de uma energia jocosa à LCD Soundsystem/hipsters dos anos zero (ainda que com menos bílis) que envergonhou a versão de estúdio.

Regresso a 2024 com A Vineyard for the North, outro portento dançável que evidencia a influência do co-produtor Remi Kabaka Jr. (que encarna o Russel Hobbs dos Gorillaz) e dos Pulp (Ryan Needham parece um clone de Jarvis Cocker), com consequente jigajoga entre fim de alinhamento principal e início de encore. A coisa não podia ficar por ali, que o público tinha fome de bola.

De várias explosões, ficou para o fim do encore a maior, com The Trench Coat Museum. Aqui metamorfoseada num altíssimo momento acid house, contou com o regresso de Murkage Dave para acompanhar Smith e o coro para uma linha da frente impressionante. A marcar o pós-quebra, um repto de Smith sobre “darmos 100% e aproveitarmos a liberdade, porque há quem não o possa fazer” que teve por réplica a erupção da sala como se tivesse sido marcado mais um golo de Geny Catamo em Alvalade. Para acabar com tudo muito #partirchão, como antigamente se dizia.

Um estrondoso ponto final num concerto triunfante de uma banda do mais interessante que para aí anda. No meio da renascença dos últimos dez anos do Reino Unido como ponto focal da música popular ocidental – lembremo-nos dos Shame, Idles, black MIDI, Forest Swords, Alabaster DePlume ou até de Charli XCX – os Yard Act são, como aqueles, gente distinta. E isso é honra que baste mas também pode ser uma maldição; não sabemos se a banda conseguirá manter este nível – criativo e em palco – mas por ora merece o título de “bandão”.

Com dois álbuns no saco bastante díspares entre si por via de uma audácia muito necessária na música popular e uma interpretação inacreditável em palco, poderão sempre responder à sua própria pergunta sobre onde está a sua utopia com um redondo “está mais perto, pois.”

À primeira vista, esta utopia não é a de Thomas More nem é uma degenerescência da sociedade utópica como sustentou Rousseau. Não houve sobreposição do interesse geral sobre o interesse individual, mas sim uma comunhão de interesses, o de ver um grande concerto e o de dar um grande concerto. Contudo, a “divisão do trabalho” até que foi à moda de More: equitativa no movimento e no divertimento, redundando numa espécie de contrato social instantâneo à Rousseau.

Neste ano e mês em que passam cinquenta anos em que por cá deixámos de ter quem nos limitasse (ou proibisse, em muitos casos) as audições, visualizações e leituras (entre outras liberdades, sem esquecer que logo de seguida quase se caiu em novo totalitarismo), testemunhámos prazerosamente uma banda que muitíssimo bem captura a vivência urbana contemporânea (como algo tão prosaico como estar no autocarro a deslizar pelo feed das redes sociais como fuga à realidade dos grunhos e dos ignorantes) e que a partir daí se vai indagando sobre a sua utopia, a vida boa a que tem(os) direito, ainda que sem grandes proselitismos. Enquanto a tal não se chega, há sempre umas malhas para ouvir e pensar e um festão para dar e ir.

A utopia fica-lhes mesmo bem.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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