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Os bagels são das melhores coisas que há. Umas vezes mais duros, outras mais macios (e uns melhores do que outros), com ou sem coberturas, certo é que saciam sempre a fome e põem-nos com um sorriso de satisfação – são uma garantia, um clássico, portanto. Os Yo La Tengo são uma banda-bagel, isto é, uma garantia de que, mesmo quando estiveram abaixo do seu padrão, nunca falham nem deixam de passear a inteireza da sua glória.
Nascidos em Hoboken, terra de Sinatra, de G. Gordon Liddy e de Ralphie Cifarett-, perdão, Joe Pantoliano há coisa de três décadas, tornaram-se numa instituição da música popular norte-americana. Desde os inícios num escorreito e auspicioso jangle (entre outros com o belíssimo New Wave Hot Dogs; Coyote, 1987) até ao recente There’s a Riot Going On (Matador, 2018), deixaram um rasto de qualidade e de peitos e ouvidos cheios de noise e exploração sonora numa espinha rock.
Se há banda que influenciou e representou os desafectos da vida devotos da música popular dita alternativa dos anos noventa são os Yo La Tengo – ouçam-se os nossos saudosos Pinhead Society, porra. James McNew, membro desde 1992, é uma relíquia desse tempo – incluindo na farpela. Todo aquele mundo de t-shirts de manga comprida de bandas mais ou menos obscuras, coleccionadores de vinil na era em que o CD, o grunge e a MTV tudo trituravam e em que a Matador era uma editora-refúgio para muita qualidade junta tem aqui refúgio. McNew não é straight man nem pau-de-cabeleira de Ira Kaplan e Georgia Hubley, o verdadeiro power couple (que o Moore-Gordon já era) dessa coisa dita “indie”, mas sim o multi-instrumentista que tanta textura confere à música dos Yo La Tengo.
Tal como na Aula Magna em 2013 e de acordo com o seu modus operandi recente, os concertos de Lisboa e Porto seriam bipartidos: uma primeira parte de calmaria semi-acústica, com intervalo a separá-la de uma segunda já de músculo. O magnífico trio-instituição atrasou-se vinte minutos, pelo que às 21h20 entraria discretamente em palco, com You Are Here. Parede de noise elegante (quase uma raga) seguida de dupla bateria com Hubley e McNew completando a melodia da guitarra de Kaplan.
Foi-se, numa penada, do downtempo (com coro doo-wop de Hubley e McNew) sussurrado de Forever à voz aveludada e quasi-maternal de Hubley numa grande Pablo and Andrea; nesta, Kaplan interrompe-a, cantando que “someone came and took all the roses away” como um Nel Monteiro lamentando a roupa roubada ao casal de Azar na Praia.
Os tapetes em palco configuravam-no como uma grande sala onde os Yo La Tengo nos recebiam, conversando musicalmente entre si – só faltou perguntarem se queríamos um cafezinho ou uma camisola de Outono. Máquina oleada, cujos derriços e pregos só adicionam ao que ouvimos, fazendo parte do ADN da banda. E sempre, sempre iguais a si próprios (cliché à parte): a t-shirt de riscas e os All-Star de Kaplan, o ar de gajo que bem podia trabalhar na Championship Vinyl de High Fidelity de McNew e Hubley deslizando entre postos de palco e derretendo-nos com a voz como se nada fosse.
O humor fez sempre parte dos Yo La Tengo e no Capitólio bem se viu um Ira Kaplan largar o piano eléctrico para bater num prato da bateria e voltar ao posto – o seu sósia Chico Marx não faria melhor, sendo ele próprio pianista. Também não têm medo de mostrar um lado melado (e um contrabaixo) e dão-nos cabo do coração com Song for Mahila, parente de Tom Waits de período tardio, sem a gravilha na voz. Trepidante intimismo (!) na sala com I’ll Be Around e ida para o balneário com Deeper Into Movies (versão de Stuff Like That There; Matador, 2015) e de preparar os tampões para os ouvidos e hidratar com uns finos.
Após o intervalo no jogo que realmente interessava nesta quarta à noite, seria a vez dos Yo La Tengo da porrada, do músculo, dos que não têm medo de nós e que nos vão foder as trombas. Perdeu-se a nuance da primeira parte, mas ganhou-se grandeza sónica dos Yo La Tengo comme il faut: Hubley na bateria dos pratos inortodoxamente inclinados (cosplay de Mo Tucker), McNew algures entre o baixo e o órgão e Kaplan curvado sobre a mártir com cordas, perdão, guitarra, à moda de Greg Ginn.
A primeira parte foi muito prazerosa, mas viemos para estes Yo La Tengo, a banda que ajudou a definir o que raio foi o rock alternativo de há um quarto de século para cá e a fazer a ponte entre oitentas e noventas e sabe-se lá mais o quê: entre a agressividade da distorção e a melodia do seu material mais pop, entre uns Hüsker Dü, Dinosaur Jr. e Laughing Hyenas e toda a tradição do cancioneiro pop anterior (ouça-se Can’t Seem To Make You Mine, por cá tocada em 2010 e 2013). Não sem antes uma fintinha com Dream Dream Away e Kaplan e Hubley brincando com pedais antes da tormenta. As bicuatas pouco mudaram, ao contrário do som.
O crescendo deu-se com Before We Run; perderam-se os arranjos de estúdio com sopros e cordas, mas a Danelectro (não o EP) de McNew assegurou inefável efeito jangle. E, bom, estava ali à mão de semear para cantar uma trémula e contida Stockholm Syndrome, desse panteão de canções dos Yo La Tengo chamado I Can Hear the Heart Beating as One (Matador, 1997).
Como se diria em Recordações da Casa Amarela (logo agora, nos oitenta anos de João César Monteiro), estava aqui uma rica hortaliça de distorção e reverb, oriunda dos amplificadores Fender de Kaplan – ouça-se I Should’ve Known Better. Nem só de guitarras viveu aquele: Sudden Organ é um malhão que se expande em qualquer concerto dos Yo La Tengo, provando-se que a banda traz os truques todos, como Vertov e sua câmara em Homem com uma Máquina de Filmar.
Sempre óptimo testemunhar os espasmos e a tensão de Kaplan, que exorciza o órgão Farfisa tornando-se parte da corrente eléctrica, enquanto cumprimos a letra à risca: “will you watch with closing eyes?”. Que torvelinho.
E que maravilha é testemunhar a ida ao baú pré-McNew de Drug Test, seguida de uma Tom Courtenay em todo o seu esplendor: aquele pigmento de Sonic Youth e a pungência do conjunto deixa-nos em espanto, como Courtenay em The Night of the Generals.
O concerto já ia longo, mas faltava a cereja no topo do bol-, o pastrami no bagel. Eis a monumental I Heard You Looking. A banda estralhaça e Kaplan assemelha-se a um Cosmo Kramer tentando não cair ou controlando uma besta sonora indomável, continuando com os espasmos e todo um teatro de distorção que tão bem soa – não obstante a violência desbragada que saía do PA. Assim passam perto de dez minutos de uma grandeza a que as bandas mais novas só poderão aspirar. É coração e sangue ebuliente.
Estamos perante um catedrático da música popular dos últimos cinquenta anos; não só sabe tocar como sabe escrever sobre elas, lido o seu passado de crítico na Village Voice e New York Rocker nos tempos essenciais do punk. Diz-se mais nestes largos minutos de delírio dos uivos dos lobos da distorção do que em festivais inteiros e a invasão de palco por uma fã para abraçar a banda toda (tímido McNew) foi o agradecimento de todos os presentes, naquele fim de set principal pelas 23h55.
A coisa não podia ficar por aqui. Aparentemente, uma das vantagens de se viver em Portugal é a de que não sabemos quem é John Davidson, diz Kaplan. As regras de alinhamento de Davidson foram mandadas fornicar, que era tempo de tocar uma relíquia que poucos pedem e “uma que o Neil Young escreveu para nós” – uma conseguida versão de Prisoners of Rock’n’Roll (mais porrada, claro).
No geral, as bandas que sabem o que fazem sabem dar ao público o que quer e, dada a hora, mandaram-nos “para de onde viemos” com uma canção de embalar via versão de Somebody’s in Love dos Cosmic Rays, grupo doo-wop juvenil tutorado por Sun Ra. Enfim, um encore que lembrou que os Yo La Tengo são exímios feitores de covers e que nada mais era necessário.
Os Yo La Tengo, banda-bagel de largo culto e instituição viva da música popular norte-americana, vieram dar uma prelecção com todos os truques que há para mostrar, saciando-nos até à próxima visita e reconfortando-nos com aquele abraço institucional e terno na sua sala-palco – com ou sem uivos e nuance.
Quem nos dera que todas as instituições fossem assim.