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Daqui a uns anos, estaremos todos tão mortos como David Bowie, mas ao contrário do genial britânico, homem de centenas de personalidades e disfarces, não seremos recordados como visionários musicais. É justo, até porque eu, por exemplo, só sei tocar flauta de bisel, e de maneira bem sofrível. O impacto de Bowie será sentido na cena musical enquanto existirem artistas com bom gosto e memória, mas na sua imensa curiosidade pela expressão artística como forma de comunicar e de viver, procurou também o Cinema. Tal não surpreende: a alcunha de Camaleão do Rock é tão válida para os múltiplos géneros musicais que explorou, como pela maneira como dominou e dobrou a sua imagem para comunicar uma ideia, um estilo, um conceito. Artista de maiúscula, David Bowie foi sempre também uma instalação artística com pernas: cada visual uma afirmação nunca vazia; cada nova persona acompanha por um palco onde espantava o mundo. A Sétima Arte, por conseguinte, seria então uma extensão do explorador de Brixton.
A presença de Bowie no grande ecrã é mais presente nos vários usos cinematográficos de temas seus, e podia-se fazer um artigo sobre isso onde encontraríamos coisas tão díspares como Inglourious basterds, Seven, Showgirls, Lost Highway ou Shall we dance?. No entanto, é o seu trabalho como actor que merecerá aqui atenção. A sua habilidade para criar personagens artísticos não só firmou a sua presença em algo mais do que canções, como serviu de inspiração à sua própria música e terá despertado curiosidade por aparecer em filmes e séries. Tendo estudado arte dramática quando era jovem, tendo até participado nalgumas peças de teatro avant-garde, Bowie estaria fadado a surgir no ecrã pela simples expressividade da sua figura: um rosto cheio de ângulos recortados, quase moldado, e a figura esquálida quase sobrenatural, quase extraterrestre, tornavam-no num daqueles objectos humanos no qual a câmara teria prazer constante em fixar-se. No entanto, a carreira de actor de Bowie não se cinge à forma, e é por isso que deixamos aqui aqueles que consideramos os seus papéis mais relevantes.
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The Man Who Fell To Earth (1983) – A sua primeira presença significativa no Cinema acontece com esta obra de Nicholas Roeg, um dos mais originais e inclassificáveis realizadores britânicos da segunda metade do século XX. Apropriadamente, interpreta um extraterrestre, Thomas Newton, que visita a terra procurando água para levar de regresso ao seu planeta. Pelo meio, torna-se rico. A linha geral do filme, de um ser de outro planeta que aprende o que é ser humano, toma contornos bizarros e negros graças ao uso de imagens surreais e da interpretação ambígua, com laivos de psicose, de Bowie. É um filme de culto não só pela presença do cantor, mas também pela mensagem final que transmite. Bowie confessaria mais tarde que foi menos uma interpretação e mais a reflexão dos seus próprios dias, sentindo-se alienado e com dez gramas de cocaína diários no seu corpo.
Hunger (1983) – Tony Scott, irmão de Ridley, realizou este filme de vampiros, sulfuroso e de estética apurada, onde Bowie contracena com Catherine Deneuve e Susan Sarandon, num triângulo amoroso entre os vampiros Bowie e Deneuve e a simples mortal Sarandon. O personagem do britânico envelhece ao longo do filme e para conseguir uma voz mais grave para a sua fase mais idosa, Bowie simplesmente colocou-se na ponte George Washington antes das gravações e gritava à cidade todas as canções rock que conhecia. Scott viria mais tarde a tornar-se num dos grandes obreiros do cinema de acção de final de década de 80 e início de década 90 (com filmes como “Top Gun” ou “Days of Thunder”), mas este continua a ser o seu filme mais característico e um dos que sempre confessou amar de entre os seus até à sua morte por suicídio em 2012.
Merry Christmas, Mr. Lawrence (1983) – A curiosidade maior desta obra é reunir no ecrã dois visionários musicais, o supracitado Bowie e Ryuichi Sakamoto. Realizado por Nagisa Oshima, conta a história de quatro personagens num campo de prisioneiros japonês na Segunda Guerra Mundial . Bowie, longe de estranhezas, interpreta aqui um major neo-zelandês, Jack Celliers, com um segredo. Oshima contratou-o depois de tê-lo visto numa performance de “The elephant man” na Broadway, acima de tudo por achar o seu espírito indestrutível, como seria adequado ao seu personagem. No entanto, Bowie diria mais tarde que enquanto Oshima dava detalhadíssimas instruções aos actores japoneses, para os britânicos dava carta branca para fazerem o que bem entendessem. O próprio Oshima fez o mesmo com a imagem do cantor: o aspecto andrógino de Bowie dá azo a uma sub-intriga carregada de homo-erotismo, como seria de esperar do homem que realizou “In the realm of the senses”.
Labyrinth (1986) – Ver David Bowie numa obra do mesmo estúdio que nos ofereceu os Marretas e a Rua Sésamo e produzida por George Lucas pode ser uma proposta estranha. Mas aconteceu neste encantador filme realizado pelo próprio Jim Henson. Bowie interpreta Jareth, o rei dos goblins, que traz para o seu reino Sarah, uma jovem de quinze anos interpretada por Jennifer Connely. Apaixonando-se por ela, pede-lhe que fique e seja sua rainha, algo a que Sarah dá alguns ouvidos porque Jareth raptou o seu irmão mais novo e se Sarah quiser reavê-lo, tem de descobrir a saída do labirinto que dá nome ao filme… A ideia de Henson foi sempre ter uma grande estrela rock a interpretar Jareth. Sting, Mick Jagger e Michael Jackson foram hipóteses, mas Henson escolheu Bowie pela sua perturbadora energia sexual. O cantor achou alguma dificuldade em contracenar com marionetas durante grande parte do filme, mas é com elas que protagoniza números musicais de canções escritas por si e que vale, só por isso uma tardezinha no sofá de volta de “Labyrinth”.
The Last Temptation Of Christ (1988) – Embora curta, a participação de Bowie como Pôncio Pilatos numa das mais marcantes obras de um dos grandes realizadores de Cinema, Martin Scorsese, merece referência. Matreiro, jocoso e político, como contraponto à impassividade de Willem Dafoe como o Jesus Cristo mais humano representado no ecrã: a certeza é que muito poucas vezes o britânico foi tão bem filmado como neste filme.
Twin Peaks: Fire Walk With Me (1993) – Dois dos Davids mais estranhos da história da arte juntos por fim. Se a intriga do filme fosse uma busca por Alejandro Jodorowsky com banda sonora de Aphex Twin, teríamos um evento que racharia a realidade ao meio. O filme segue (ou precede) os eventos da seminal série de Lynch e Mark Frost, e Bowie interpreta um agente do FBI, Philip Jeffries. O músico participou basicamente à borla, como outros actores e cantores que entram no filme, só porque era fã de “Twin Peaks”. As suas cenas foram gravadas em quatro dias, portanto a aparição é esporádica. No entanto, ver Lynch e Bowie contracenando é coisa para ficar na história. Se ao menos tivessem convencido o Camaleão a fazer um dance-off com um anão de casaco vermelho…
Basquiat (1996) – Sabiam que David Bowie interpretou Andy Warhol, num daqueles momentos tão meta que parecem mentira? Mas aconteceu, neste filme de Julian Schnabel. Narrando a vida de Jean-Michel Basquiat, figura importante da cena artística nova-iorquina da década de 80, Warhol é figura cimeira e o curioso é que de certeza que algures na sua carreira, Bowie e o bizarro artista de origem polaca ter-se-ão cruzado.
Zoolander (2001) – Esta divertida sátira ao mundo da moda, realizada por Ben Stiller, é travada a meio por um duelo de desfile entre Derek Zoolander e Hansel, interpretados respectivamente por Stiller e Owen Wilson. Quem melhor para julgar a contenda do que o intérprete de “Fashion”? Bowie interpreta-se a si mesmo e enche a cena de estilo, numa das suas performances mais divertidas, onde chega a parodiar o seu próprio carisma. Wilson e Stiller mantêm o ridículo em alta, mas é Bowie que procuramos em cada momento.
The Prestige (2006) – O último filme de excelência de Christopher Nolan aparte “The dark knight” vê David Bowie no seu último grande papel no Cinema, e apropriadamente, para um homem que se tornou numa lenda da cultura pop, o cantor interpreta uma figura sobre a qual lendas se escrevem sozinhas: Nikola Tesla, o inventor sérvio. A sua primeira aparição, surgindo como uma sombra por entre feixes de electricidade, evoca Ziggy Stardust no seu mais tecnológico. O filme retrata a rivalidade entre dois mágicos, e Bowie contracena sempre com Hugh Jackman, mas nunca é obscurecido pelo carisma natural do australiano. Envergando um Tesla já no início da sua fase de isolamento, é palpável o peso não só moral, mas também da perda de um mundo por sim visto.
Nolan admitiu que só via Bowie como Tesla, e entende-se pelos seus paralelos como criadores e visionários. No entanto existe uma diferença substancial entre ambos: se Tesla foi aplaudido como visionário para mais tarde ser derrubado por Edison e outros empresários, Bowie nunca caiu. Se é verdade que alguns artistas nunca morrem, não é menos mentira que outros parecem nem sequer viver: são parte do éter humano, presenças que não têm princípio nem fim, que não surgem mas também não abandonam. Pairam sobre a existência e a vida humana, um pouco como imagens permanentes e plasmadas na nossa impressão do mundo. David Bowie é um desses homens, e o mais importante filme em que participou não foi nenhum dos mencionados: foi cada dia das nossas vidas.