Stanley Kubrick: o génio minucioso, obcecado e irrepetível.

por Isabel Leirós em 3 Setembro, 2019

Cerebral, idolatrado, cineasta de referência, visionário de alguns dos melhores filmes do século XX. Eis Stanley Kubrick, o realizador norte-americano radicado no Reino Unido, figura central da retrospectiva no Design Museum de Londres. Uma exposição para cinéfilos ou para quem (ainda) não conhece o seu trabalho, visualmente muito apelativa e com imenso potencial para figurar nas modernas galerias de Instagram. Como diria a personagem Alex DeLarge, «Viddy well, little brother. Viddy well.».

A entrada faz-se pisando a carpete do hotel de Shining, thriller psicótico de 1980 que nos ensinou a escrever redrum, e atravessando painéis em que se projectam alguns dos filmes mais aclamados do realizador – não são todos? Passos carregados de inegável simbolismo, travessia que nos leva a mergulhar no mundo e no imaginário de Kubrick.

 

 

Ao percorrer esta entrada, surgem nos painéis cenas de Full Metal Jacket (1987), Barry Lyndon (1975), A Clockwork Orange (1971), 2001: A Space Odyssey (1968), Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964, filme chumbado pela censura em Portugal), Paths of Glory (1957). Excertos estes que partilham um frequente movimento de câmara de Kubrick, que desliza a lente pela cena para que participemos da acção.

Nesta pequena amostra da filmografia de Stanley Kubrick captamos a grandiosidade do seu legado. Ao todo, realizou treze filmes – dos quais Fear and Desire, Killer’s Kiss e The Killing (1953, 1955 e 1956) serão os menos populares -, cada título um universo construído de raiz, minuciosamente estudado e composto, em que todos os detalhes eram cuidados… e pelo próprio.

 

 

Kubrick nunca escondeu o seu desejo de controlo, um método de trabalho fanático mas que produziu um arquivo documental e detalhado do processo de construção do filme, do argumento à pós-produção. Vemos espalhadas nas paredes da exposição fotografias anotadas e desenhadas de prospecção de cenários, nas vitrines guardam-se livros e documentos que Kubrick estudou cuidadosamente, lemos a dada a altura que qualquer corte de fita passava por ele, descobrimos que repetia incansavelmente a mesma cena até à perfeição, e que preferia filmar em excesso a arriscar um filme incompleto.

Afinal, em preparação do filme sobre Napoleão, Stanley Kubrick acumulou 18.000 fotografias, 25.000 cartões de anotações, livros e documentos. Acabaria por nunca se concretizar, mas serviu de base para o trabalho a desenvolver em Barry Lyndon. E é impossível não referir o tempo que dedicou ao estudo e compreensão de inteligência artificial para o filme A.I., que acabaria por ser realizado por Steven Spielberg após a morte de Kubrick.

 

 

A exposição no Design Museum revela-nos esse lado de Stanley Kubrick reunindo artefactos como esta mesa de edição do filme Full Metal Jacket, a sua cadeira de set, as lentes com que filmava, maquetes detalhadas do labirinto do Shining e do shuttle espacial em 2001: A Space Odyssey, as malas de viagem feitas à sua medida, tal a dificuldade em encontrar malas que correspondessem à sua visão. A obsessão, o perfeccionismo, a insatisfação levaram-no a construir Vietname em Londres, transformando uma zona industrial no cenário de guerra que Matthew Modine protagoniza, e a orientar até os extras no filme Spartacus, como nos revela uma fotografia em que estes estão derrotados no chão e numerados para que o realizador conseguisse comunicar.

 

 

São vários os adereços e o guarda-roupa em exposição. Na secção da exposição dedicada ao Shining, encontramos a máquina de escrever usada por Jack Torrance («Here’s Johnny!») e mais uma particularidade: Kubrick filmou variações do plano em que se lê «All work and no play makes Jack a dull boy» em diferentes idiomas, já considerando as geografias em que os filmes seriam dobrados para cinema.

O universo cinematográfico faz-se de detalhes. Há uma secção da exposição que enquadra a utilização de composições clássicas e pop como recurso de tradução de emoções, de ampliação da tensão na tela. A 9ª sinfonia de Beethoven e “Singin’ in the rain” coexistem e funcionam – mesmo quando este segundo tema é cantarolado por Alex num momento de ultraviolência.

 

 

A dada altura Stanley Kubrick declarou que

Just as actors have a recurring fear that they’ll never get another part, I have a recurring fear that I’ll never find another story I like well enough to film.

Talvez tenha sido esta busca incessante que o tenha levado a percorrer um caminho tão distinto. Sem repetir géneros nem épocas, definiu a estética da era espacial e até do sci-fi contemporâneo (e há quem diga que filmou a chegada à Lua…), captou o thriller clássico em Shining e cristalizou a sociedade ultraviolenta e distópica em A Clockwork Orange (numa homenagem à arquitectura brutalista de Londres pós-guerra), pasmou-nos com o indecifrável existencialismo de 2001: A Space Odyssey, comoveu-nos com a austeridade da guerra em Paths of Glory (1957) captados por planos frontais de rostos endurecidos, seduziu-nos com o seu último trabalho Eyes Wide Shut (1999) traduzindo para o novo milénio um romance de 1926. Morreu apenas seis dias depois de ter apresentado o final cut ao estúdio, como se não se tivesse permitido deixar um trabalho inacabado.

Há quem questione a escolha do Design Museum para esta exposição, ao invés de um espaço dedicado ao cinema ou à arte moderna. A verdade é que Kubrick trabalhou com influentes designers e era ele próprio um profundo conhecedor do processo criativo inerente à área. Dominava quer os aspectos gráficos, quer de concepção de produto. E compreendia o principal propósito do design: a funcionalidade que cada cenário e detalhe deverá ter no resultado final.

 

De forma não linear nem seguindo uma linha temporal, Stanley Kubrick contou-nos pela sua filmografia a história da Humanidade, dos primórdios da racionalidade à conquista sangrenta pela guerra, da luta corpo-a-corpo às armas biológicas, não esquecendo as dinâmicas familiares e os factores sociais que condicionam o indivíduo, elogiando a inovação e o progresso, equilibrando crime/castigo e dor/prazer, e sem esconder os comportamentos desviantes, os marginais e os marginalizados. Afinal, o mundo faz-se de loucos e de iluminados, numa evolução caótica cujo resultado final é insondável.

 

Visita à exposição e fotografias de Ed Reeve gentilmente cedidas pelo Design Museum – designmuseum.org


sobre o autor

Isabel Leirós

"Oh, there is thunder in our hearts" (Ver mais artigos)

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