AFTER LIFE | Há vida depois da vida

por Edite Queiroz em 13 Março, 2019

No início da série de seis episódios escrita, protagonizada e realizada por Ricky Gervais para a Netflix, vemos um vídeo da esposa de Tony, filmado pouco antes da sua morte, no qual ela lhe deixa instruções básicas para o dia-a-dia. Recorda-lhe que ele é um homem bom, que alimente o cão, que lave a loiça, que se esforce por ser feliz. Mas Tony perdeu a alegria de viver e vê-se incapaz de reencontrar entusiasmo no trabalho, nos amigos ou nas visitas ao pai idoso. Depois de contemplar o suicídio (do qual desiste por causa do cão), decide sobreviver à dor fazendo e dizendo o que lhe apetece, sem regras ou filtros, punindo os que o rodeiam com a sua revolta (às vezes indiferença) e uma espécie de honestidade bruta, agora vivida como um superpoder.

Em After Life, a simplicidade do argumento e a excelência dos actores são dispositivos usados de forma discreta, para melhor sondar temas familiares ao humor de Ricky Gervais: a velhice, a doença, a morte, o luto, o excesso de peso, o desencanto com a rotina diária. Em torno do anti-herói gravitam o cunhado bem-intencionado (Tom Basden) que é também seu chefe num pequeno jornal local, o colega gorducho (Tony Way), a colega chata (Diane Morgan) a nova repórter (Mandeep Dhillon), o pai demente (David Bradley), a enfermeira deste último (Ashley Jensen), um sem-abrigo a quem pagam para distribuir o pasquim (Tim Plester), uma prostituta simpática que ele converte em empregada doméstica (Roisin Conaty). Todos parecem empenhados em ajudá-lo, apesar de vítimas do seu pessimismo, observações cáusticas e ameaças de suicídio.

Embora os seis episódios exibam sobretudo o exercício da tal honestidade bruta de Tony sobre os amigos, colegas e família, contam num ritmo lento a história de um luto vulgar, agridoce, humano – é o seu grande arco dramático. A narrativa ilustra com precisão os detalhes de uma situação complexa (os problemas de sono e alimentação, a apatia, a perda do prazer no convívio, a tristeza profunda, a tendência para excessos), intercalando-os com histórias caricatas que Tony documenta nas suas reportagens, reflexões existenciais amargas e muito sarcasmo.

Existe, no entanto, uma dualidade na personalidade de Tony, já que o seu comportamento é inverso ao que nos é dado a perceber pelos relatos da esposa nos vídeos que lhe deixa. Essa dissonância – o homem bom que se transforma num idiota – é utilizada para evidenciar o vazio existencial da personagem, explicar a perplexidade dos amigos e guiar uma jornada de recuperação de um certo prazer de viver, mas também para testar os limites do humor ou a diferença entre ser honesto e ser cruel ou ofensivo (aspectos discutidos pelo humorista no stand-up Humanity, também disponível na Netflix). A personagem exibe ainda as contradições clássicas da depressão no luto, reflecte a importância das memórias e da partilha de experiências (brilhante, o encontro com a personagem de Penelope Wilton, uma mulher mais velha que perdeu o marido) e integra o papel do tempo na reorganização da dor.

É obviamente redutor catalogar a série como uma simples comédia, mas a comédia está lá e é uma das suas grandes lições: porque o humor é realmente uma das mais poderosas armas de saúde mental, felizes os que preservam a capacidade de aligeirar os acontecimentos trágicos e de nos fazer rir com eles. Por detrás de uma abordagem aparentemente niilista, After Life é um elogio à vida, aos outros e ao extraordinário nas pequenas coisas.


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Edite Queiroz

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