Justified: o western noir

por Bruno Ricardo em 19 Abril, 2015

Ao longo da série Justified, ouve-se várias vezes uma canção quase de mau agouro, que entoa You’ll never leave Harlan alive. Esta Harlan é o condado onde se passa a série que adapta personagens da short story Fire in the hole, do guru da pulp norte-americana Elmore Leonard. O escritor construiu uma carreira como porta-voz de histórias com esquemas complexos e interligados em teia, que acabam normalmente com criminosos de baixa estirpe a safar-se; ou homens e mulheres presos num tempo que não o seu; ou ainda simples derivas criminais, normalmente usando como pano de fundo a América rural, ou pelo menos de província. Justified usa tudo isto. Começa com o regresso de um US Marshall, Raylan Givens, à terra que o viu nascer: Harlan, no Kentucky. Givens vem despachado de Miami depois de um tiroteio onde a sua tendência para ser um cowboy do século XIX num mundo contemporâneo levanta dúvidas quanto à legitimidade. Ele quer tudo menos voltar a uma terra de onde quase ninguém sai, o tipo de fim do mundo rural onde só se sobrevive sendo-se polícia ou criminoso, pois são as únicas maneiras de enriquecer e construir a vida. A série estabelece este contraponto entre Givens e o seu antigo melhor amigo, Boyd Crowder, que com ele cresceu e trabalhou numa minha de carvão. Crowder, no entanto, acabou por enveredar por uma carreira de crime, que vai escalando ao longo de cada temporada. Apesar do riquíssimo painel de secundários que Justified vai construindo (alguns quase a merecer uma série própria), a narrativa principal é a confrontação directa ou indirecta entre estes dois homens, muitas vezes tendo pelo meio Ava Crowder, ex-namorada de Givens e ex-cunhada de Crowder, tendo assassinado o irmão deste.

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O final da série no dia 14 não criou por cá grande estardalhaço, mas é pena, pois estamos perante um dos produtos televisivos mais interessantes e consistentes desta nova era dourada da Televisão. Tirando a 5ª temporada, desinspirada e a pontos medíocre, Justified é tudo o que é bom: gente que interessa ver em cena, uma realização fantástica na criação de ambiente e cruzamento de géneros e a noção de que se pode fazer televisão com estilo, mas sem nunca ser sério. Ir até à Harlan de Justified é penetrar quase para lá do limite da civilização, onde a lei tem dificuldade em fazer-se sentir por outro modo que não a força, pois não é reconhecida pelos selvagens. É o regresso ao western, mas aqui num tom noir. Raylan Givens passa sempre por ser um mal necessário, quando se torna evidente que a sua postura como agente da lei é também alimentada por muita raiva ressentida, principalmente contra o pai, e que este regresso a Harlan pode ser um regresso a tudo isso que pensou ter deixado para trás. Ao longo da série, torna-se claro que é a sua própria natureza. Por entre esquemas criminais mais ou menos coloridos, que constituem os vários episódios da série, o tema principal parece claro: pode um homem fugir à sua própria natureza e criação e forjar um caminho diferente? Ou temos de nos entregar ao que somos e vivermos com entrega ao destino? A pergunta reverbera em quase todas as temporadas, pelos vários lados escondidos de Harlan que vamos conhecendo, em rivalidades entre famílias que duram décadas. Outra componente refrescante de Justified (e que está presente noutras obras de Elmore Leonard adaptadas ao cinema em filmes como Out of sight, de Steven Soderbergh, ou Jackie Brown, de Quentin Tarantino) é a ideia da mulher que sabe perfeitamente desenvencilhar-se e sobreviver pelos seus próprios meios. É  refrescante ver isto num mundo onde mesmo séries da craveira de Breaking Bad criam estereótipos de personagens femininas cuja única função parecer ser atrapalhar a vida do protagonista. Mesmo numa série dominada por homens, os argumentistas criam espaço para mulheres memoráveis: Ava Crowder, Mags Bennett, Catherine Hale… Cada uma delas o exemplo do que uma mulher complexa e resiliente pode fazer na narrativa televisiva.

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O que Justified tem a mais são bons actores, e o destaque vai para os dois principais: Timothy Olyphant tem talvez sido o mais subestimado actor televisivo dos últimos anos, pois o que ele faz e comunica como Raylan Givens, com o mínimo de gestos, o máximo de pose e toda a cadência perfeita para fazer desfilar as frases cool de Leonard é um conjunto de expressão emocional e noção do que é um actor num ambiente deste género que poucos alcançam. Givens nunca tem uma daquelas grandes cenas dramáticas de berros e gestos espalhafatosos: dentro de si, há um lago de enxofre, e muitas vezes, está tudo no olhar de Olyphant, nessa dor, raiva e até compaixão por alguns dos idiotas mais chapados que surgem de buracos nas colinas de Harlan. Walton Goggins viu a sua carreira crescer com a popularidade do seu Boyd Crowder, um fora da lei com alma e espírito de pregador religioso, que nunca perde a oportunidade de exprimir com dez palavras o que pode dizer com três. A verdadeira língua do Diabo, Crowder é também um indivíduo inteligente que talvez pudesse ter feito alguma coisa da vida, mas virou-se para o crime, porque é o que o conhece, um negócio de família e o caminho mais fácil. A tensão que oferece a todas as cenas em que entra e a imprevisibilidade do seu comportamento dão a Justified uma força suplementar.

É provável que não conheçam, e por isso incentivo a conhecer. Se precisarem de mais motivos, convido a ler esta fala do primeiro episódio da série, que encapsula tudo o que há de fantástico sobre a mesma.

Raylan Givens: Dear Lord, before we eat this meal we ask forgiveness for our sins, especially Boyd- who blew up a black church with a rocket launcher, and afterwards he shot his associate Jared Hale in the back of the head out on Tate’s Creek bridge. Let the image of Jared’s brain matter on that windshield not dampen our appetites, but may the knowledge of Boyd’s past sins help guide these men. May this food provide them with all the nourishment they need. But, if it does not, may they find comfort in knowing that the United States Marshal Service is offering fifty-thousand dollars to any individual providing information that will put Boyd back in prison. Cash or check, we can make it out to them. Or to Jesus. Whoever they want. In your name, we pray. Amen.


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Bruno Ricardo

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