True Detective

por Bruno Ricardo em 7 Fevereiro, 2015

O sentimento constante quando True Detective se desfia à frente dos nossos olhos é o de estarmos a assistir a algo maior do que o Homem, com a Lousiana a ser, ao mesmo tempo, palco do mundo e boca do inferno, e onde pirâmides de galhos e hastes de veado são as marcas de um mal que parece primitivo e sem um início ou um fim específico: está, habita e nunca pode ser desalojado. É por isso surpreendente que, ao final de 8 capítulos e um último episódio que chega a ter ressonâncias míticas bem para lá do gótico americano e do pulp que são a base da grande intriga criminal da série (o labirinto do minotauro é uma referência que me parece evidente), se chegue à conclusão de que True Detective foi sempre sobre os pequenos planetas chamados Rust Cohle e Martin Hart.

Perseguindo os defeitos do homem estão dois homens com defeito: um que pensa conhecer-se bem demais, o outro que não se conhece e ainda não o sabe. É na tensão entre eles e na sua resolução final que True Detective adquire os contornos míticos que passam ao lado daquilo que o espectador pensa procurar. Uma década de mistérios de televisão intrincados levam-nos a pensar no mais complicado quando vemos uma história: procurar pistas mínimas, ligações, conjecturas. Esta série é bem mais simples do que isso, e no entanto, é da complexidade inerente ao que somos que retira a sua força motriz. Cohle e Hart percorrem o percurso do herói, mas sempre com a noção de que não são heróis, mas apenas escravos de uma vontade maior que um pode atribuir a Deus, mas que outro relega, uma vez e sempre, ao dever de um ser humano que escolhe para si o sacrifício de remir, através do afastamento da sociedade, o Mal que grassa. Isto sem nunca presumir que é mais do que esse mundo contaminado. O niilismo ateu de Rust Cohle torna-o na figura crística mais estranha dos últimos anos, e seria o protagonista perfeito dos filmes iniciais de Martin Scorsese.

True Detective escolhe um modelo pouco comum na televisão norte-americana: é escrita apenas por um homem (o excelente e perspicaz Nic Pizzolato) e realizada por outro (num trabalho superlativo na captação do espírito da Louisiana em película e que supera largamente quase tudo o que se faz na televisão actualmente; Cary Fukunaga é o verdadeiro detective da série, procurando sempre nos lugares e nos objectos aquilo que não se pode descrever com palavras), é um exemplo a seguir no que à qualidade diz respeito, entregando o seu rumo à visão de dois homens. É, no entanto, outro par que enraíza toda a história: Woody Harrelson interpreta o homem comum que comummente se perde ao querer ser tão normal que se esquece do que o torna animal e sorvedor de vida. É um papel complicado, mas Harrelson enverga essa armadura cheia de mossas com estatura e a procura de redenção que estará no fim de um labirinto; Matthew McConnaughey torna o papel de Rust Cohle icónico. Como se fosse um pregador do Sul enxertado no Bayou, McConnaughey é menos um corpo e mais um espírito desencarnado há muito, que navega na suas palavras e sente o mundo e o seu peso como se fosse o titã Atlas. É o mais próximo da taciturna, e no entanto poética, figura do cavaleiro negro que procura a luz que temos desde que Frank Black partiu com a filha não se sabe bem para onde na terceira temporada de Millennium. Está tudo no olhar perdido, mas faíscante, que empresta a Cohle, na estranha coreografia do corpo quotidiano, na cadência e desnecessária elaboração do discurso: um homem preso em si e que foge disso e da realidade. Se quisermos ser mais simples, onde Harrelson é banalmente brilhante, McConnaughey é a essência faíscante desse brilhantismo.

No final, regressa-se à história mais simples de todas, a primária que lançou todo o nosso amor pela narrativa como arte de contar uma história: o Bem contra o Mal, a luz contra as sombras; e no meio de tantos finais surpresa previstos, a única reviravolta é a de dois homens que uma vez cegos, voltam a ver depois de um mergulho no poço de breu. Quando de lá saem, contemplam as estrelas, e descobrem a verdade de ser detective: a justiça vai-se conseguindo e não é absoluta; mas desde que se acendam candeeiros suficientes, os detectives tornarão o mundo um pouco menos labiríntico para si próprios e para nós, que nele habitamos.


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Bruno Ricardo

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